quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O presidente


O presidente do Brasil


Tem uns caras que a gente olha para eles e dá vontade de fazer um bulling neles. Sei que o bulling é feio e tudo mais, só que uns e outros parece que pedem:

– Queria ser bullimizado...

Não porque sejam tímidos. Nem porque sejam nerds ou, como se dizia antes, crentes. Nada disso. É aquela arrogância silenciosa, manja? Aquele desdém pelos outros seres respirantes, pelos humanos de qualidade inferior. É por isso que eles ficam quietos. Eles não toleram interagir com quem não é do nível deles. Eles pedem é um bom bulling, sim, senhor.


Conheci um cara assim, uma vez. Um mestre de xadrez juvenil. Naquele tempo, o xadrez era muito popular no Brasil, por causa do Mequinho. Lembra do Mequinho? No mundo inteiro, o Mequinho só perdia para o Karpov e o Korchnoi. Derrotava todos os outros seis bilhões de habitantes do planeta Terra. Então, os brasileiros eram muito orgulhosos do seu talento inato para o enxadrismo, prova das habilidades intelectuais desse povo inzoneiro.


Aí chegou aquele guri. Veio ao IAPI trazido pela Biblioteca Romano Reiff. Ia jogar uma série de partidas de xadrez contra nós, os guris do bairro. Olhei bem para ele. Usava óculos, claro, e, claro, era meio gorducho. Meio molengoide, também. Jeito de moscão. Foi apresentado como uma celebridade.

– É um gênio! – exclamavam as professoras da biblioteca. – Um gênio! Esse guri ainda vai ser presidente do Brasil.


Fiquei ansioso para conhecê-lo. Nunca tinha visto um gênio ou um futuro presidente. Além do mais, eu jogava xadrez, e achava que jogava bem. Apresentei-me para enfrentá-lo. Fiquei pensando: imagina se venço esse gênio? Aí o gênio sou eu!


Então, fui todo sorridente falar com ele. Achei que poderíamos travar uma conversa inteligente e tal. Ao cumprimentá-lo, fiz uma brincadeira, disse que ele que se cuidasse, pois a minha abertura na tática pastorzinho era irresistível. Algo nesse estilo. Mas o gênio nem olhou para mim. Nem olhou! Exalou um suspiro de enfaro, virou-se para a professora e avisou que estava pronto para jogar.


Eu ali, humilhado, pensei: que vontade de dar um cascudo nesse exibido. Dar cascudo, na época, era como fazer bulling hoje. Tive ganas de lhe aplicar uns cascudos. Mas me contive. Decidi que minha vingança seria no tabuleiro. Esse gênio vai ver com quem ele está lidando, prometi para mim mesmo.


Sentamo-nos todos atrás das peças, uns 20 jogadores de 10 ou 12 anos de idade. O gênio permaneceu de pé, sério, olhar distraído. Eu estava com as pretas. Ele foi mexendo as peças de um tabuleiro, outro e outro, até que parou em frente à minha mesa. Continuou sem me olhar. Abriu com o peão do bispo, o que me surpreendeu um pouco. O que aquele maldito gênio molenga pretendia com aquele maldito peão do bispo? Hmmm...


Em todo caso, tentei ser cauteloso na abertura. Ele seguiu jogando com os outros. Cada vez que voltava e passava por mim, passava sem me olhar. Olhava só para o tabuleiro. Mexia rapidamente nas peças e deslizava para o lado. Não sei o que aquele cara fazia, não sei como fazia, mas o fato é que em cinco ou seis movimentos aquelas peças dele estavam todas lá na frente, acossando meu rei. Os bispos e os cavalos dele se multiplicavam, nunca vi tanto bispo e tanto cavalo num jogo, as torres zuniam à direita e à esquerda, a rainha dele parecia um trem, atropelando meus peões desnutridos, ameaçando meus cavalos pangarés. O guri jogava com uma agressividade assassina, com uma frieza de carrasco, acicatava meu rei pelos lados e pelo centro. Eu pensava e pensava, suava de tanto pensar. Tentava me defender com minhas parcas peças, mas as ia perdendo a cada lance. Oprimido, angustiado, encurralado, queria gritar por socorro. Mas ninguém ia me acudir. Todos os adversários do gênio estavam na mesma situação. Perdi. Perdemos. Ele venceu e se foi sem um sorriso. Era rotina para ele.


Não sei como aquele cara não é presidente do Brasil, mas compreendo seu ar de tédio. Era a expressão de quem está farto de tanto vencer. Vitórias em demasia às vezes fazem mal. Alguém já reparou nas arquibancadas da torcida do São Paulo? Meia dúzia de torcedores bocejando. Os são-paulinos não acham mais graça na vida, porque a vida só tem graça quando existe desafio. O São Paulo só vai recuperar o brio, a pulsação de um time de verdade, quando cair para a Segunda Divisão. Haverá de cair, para seu próprio proveito. Vencer demais também faz mal. O que me leva a concluir: bem que devia ter feito um bulling naquele gorducho.
David Coimbra
Texto publicado na página 51 de Zero Hora 05/08/09

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