domingo, 31 de outubro de 2010

Isto é tudo


As urnas estão fechadas,

os corações estão mudos,

mas o amor paira e condena —

isto é tudo.



As mãos vão entrelaçadas,

o olhar é sereno e agudo,

e o amor é mais do que as almas —

isto é tudo.



A lágrima quase aponta,

O desejo é um breve escudo,

e o amor é quase nada —

isto é tudo.


Walmir Ayala

A Mercedes é demais - Ana mello


Para quem não leu minha crônica sobre a gata da vizinha,
eu explico que a Mercedes é a gata da minha vizinha.
Em uma viagem da dona eu tomei conta dela e ficamos muito amigas.
Mercedes sabe meus horários e muitas vezes ela pede para me visitar cedo,
antes da minha saída para o trabalho e me espera pontualmente,
no final da tarde.

Digo que ela simplesmente me ama e conquistou a todos lá em casa
porque sabe dividir o carinho, parecer simpática, brincar quando solicitada
e faz carinhas meigas quando quer alguma coisa. Além disso,
só fez xixi no vaso de plantas umas poucas vezes, geralmente pede para sair
quando esta necessitando usar seu banheiro particular, nos fundos do prédio
onde tem terra, árvore e uns verdinhos. Alguns dias ela fica com o maior
sono e não quer ir embora à hora combinada, não resisto e vou dormir
e as 4h da manhã ela caminha na minha cabeça pedindo para descer,
pois moramos no terceiro andar. Já expliquei que isso não é muito legal,
pois tenho que circular de pijama pelo prédio ou trocar toda a roupa
e depois recolocar meu pijama. Não adiantou muito, mas essa semana
fui radical, na quinta-feira estava com uma danada de uma dor no pé
e despachei a Mercedes depois do jantar.

Na manhã de sexta acordamos no horário de sempre e após o café
cada um seguiu fazendo sua higiene e preparando suas coisas.
Da cozinha escutei uns miados e fiquei procurando localizar
de onde vinham. Não acreditei quando descobri e chamei meu marido
e filho para testemunharem o fato. Temos um enorme jacarandá na divisa
do prédio em que moramos com o prédio ao lado, os galhos chegam
próximos a janela do quarto do meu filho e num destes galhos
que a Mercedes estava com seus olhos azuis arregalados.
Miando e olhando para dentro de casa. Levei um susto e nem pensei
em fotografar.

Falei – desce daí guria. Prontamente ela desceu e foi me esperar
na porta do prédio.

Entrou correndo, chegando em casa não parava de se exibir.
Corria, pegava a bolinha de papel, os bichinhos de pelúcia, rolava,
passava nas nossas pernas fazendo carinho e miando. Que gata safada.

Não sei explicar e nem acho que deva, bichos são muito legais.
O Luiz Paulo me disse que eles escolhem a gente, isso é verdade
e aconteceu também com o Charles, o gato do meu trabalho
que adora dormir na nossa impressora. Não sou eu que atraio felinos,
embora eu confesse que sei escolher a comida certa, fazer carinho.
Muita gente gosta de gatos até os poetas gostam, ainda mais quando eles
são como a Mercedes, uma gata que é demais!

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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A arte de ser avô


Netos são como heranças: Você os ganha sem merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu...
É como dizem os ingleses, um "Ato de Deus". Sem se passarem as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as dores da maternidade.
E não se trata de um filho apenas suposto. O neto é realmente, o sangue do seu sangue, filho do filho, mais filho que filho mesmo...
Cinqüenta anos, cinqüenta e cinco... Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro.
A velhice tem suas alegrias, as suas compensações; todos dizem isso, embora você pessoalmente, ainda não tenha descoberto, mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.
Não de amores com paixões: a doçura da meia idade não lhe exige essa efervecência. A saudade é de alguma coisa que você tinha e que lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade...
Bracinhos de criança.

O tumulto da presença infantil ao seu redor.

Meu Deus, para onde foram as suas crianças?
Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum suas crianças perdidas...
São homens e mulheres, não são mais aqueles que você se recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe coloca nos braços um bebê.

Completamente grátis - nisso é que está a maravilha.
Sem dores, nem choro, aquela da qual você morria de saudades, símbolos ou penhor da mocidade perdida.
Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um filho seu que lhe é devolvido.
E o espanto é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com extravagância.
Ao contrário, causaria espanto, decepção se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava, desdenhado no seu coração.

Sim, tenho certeza de que a vida nos dá netos para nos compensar de todas as perdas trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico deixado pelos arroubos juvenis.
E quando você embala o(a) menino(a) e ele(a), tonto(a) de sono abre o olho e diz "VÔ,VÓ !" seu coração estala de felicidade, como pão no forno!"



Rachel de Queiroz

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Inscrição ...

para um portão de cemitério




Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce - uma estrela,
Quando se morre - uma cruz.



Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
"Ponham-me a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!"



Mário Quintana

domingo, 24 de outubro de 2010

O gato


Com um lindo salto
Lesto e seguro
O gato passa
Do chão ao muro

Logo mudando

De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão

E pega corre
Bem de mansinho
Atrás de um pobre
De um passarinho

Súbito pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado


E quando tudo
Se lhe fatiga
Toma o seu banho
Passando a língua
Pela barriga.

Vinícius de Moraes

No banco do jardim


No banco de jardim,
o tempo se desfaz
e resta entre ruídos
a corola de paz.

No banco de jardim,
a sombra se adelgaça
e entre besouro e concha
de segredo, o anjo passa.

No banco de jardim,
o cosmo se resume
em serena parábola,
impressentido lume.


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Ninguém me habita


Ninguém me habita.
A não ser
o milagre da matéria
que me faz capaz de amor,
e o mistério da memória
que urde o tempo em meus neurônios,
para que eu, vivendo agora,
possa me rever no outrora.

Ninguém me habita.
Sozinho
resvalo pelos declives
onde me esperam, me chamam
(meu ser me diz se as atendo)
feiúras que me fascinam,
belezas que me endoidecem.

Thiago de Mello

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Tudo


Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura.

Paulo Leminski

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Eu não existo sem você



Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Me encaminham pra você

Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
Eu não existo sem você.

Vinícius de Moraes

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O amor


Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Prece do educador


Senhor,

Que eu possa me debruçar sobre cada criança, e sobre cada jovem, com a reverência
que deve animar minha alma diante de toda criatura tua!

Que eu respeite em cada ser humano de que me aproximar, o sagrado direito de ele próprio construir seu ser e escolher seu pensar!

Que eu não deseje me apoderar do espírito de ninguém, imprimindo-lhe meus caprichos e meus desejos pessoais, nem exigindo qualquer recompensa por aquilo que devo lhe dar de alma para alma!

Que eu saiba acender o impulso do progresso, encontrando o fio condutor de desenvolvimento de cada um, dando-lhes o que eles já possuem e não sabem, fazendo-os surpreenderem-se consigo mesmos!

Que eu me impregne de infinita paciência, de inquebrantável perseverança e de suprema força interior para me manter sempre sob o meu próprio domínio, sem deixar flutuar meu espírito ao sabor das circunstâncias! Mas que minha segurança não seja dogmatismo e inflexibilidade e que minha serenidade não seja mormaço espiritual!

Que eu passe por todos, sem nenhuma arrogância e sem pretensão à verdade absoluta, mas que deixe em cada um, uma marca inesquecível. por ter transmitido alguma centelha de verdade e todo o meu amor!

Amém


terça-feira, 12 de outubro de 2010

A GALINHA COR-DE-ROSA





Era uma galinha cor-de-rosa,

Metida a chique, toda orgulhosa,

Que detestava pisar no chão

Cheio de lama do galinheiro.

Ficava no alto do poleiro

E quando saía do lugar,

Batia as asas para voar.

Mas seus pés acabavam na lama.

Aí armava o maior chilique,

Cacarejava, bicava o galo,

E depois, com ar de rainha,

Lavava os pés numa pocinha.


Duda Machado

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Canção do negrinho do pastoreio

Negrinho do Pastoreiro,
Venho acender a velinha
que palpita em teu louvor.
A luz da vela me mostre
o caminho do meu amor.

A luz da vela me mostre
onde está Nosso Senhor.

Eu quero ver outra luz
clarão santo, clarão grande
como a verdade e o caminho
na falação de Jesus.

Negrinho do Pastoreiro
diz que Você acha tudo
se a gente acender um lume
de velinha em seu louvor.


Augusto Meyer

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Sonhar


Porque as palavras sempre chegam

tarde demais ou demasiado cedo.

Porque é um outro,

sempre outro, quem fala.

E porque aquele de quem se fala

silencia ...

Sim, sonhar é muito importante.

É necessário, é imprescindível mas ...

Sonhar, sem deixar que o sol do sonho

te arraste pelas campinas do vento

e não veja o que se passa ao redor ...

É muito bom sonhar ...

Mas ... Sonhar, cavalgando o sonho

e inventando o chão

para o sonho

florescer.


Thiago de Mello

terça-feira, 5 de outubro de 2010

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Coração é terra que ninguém vê


Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri.

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei.

Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura
da ingratidão

Coração é terra que ninguém vê
- diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.


Terra de lagedo, de pedregulho,
- teu coração. Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei...

Cora Coralina

domingo, 3 de outubro de 2010

Não tenho ambições nem desejos


Não tenho ambições nem desejos.
ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.

Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem sabe o que é amar...

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Fernando Pessoa
Imagem: João Viegas

sábado, 2 de outubro de 2010

Apocalipse




As velas estão abertas como luzes.
As ondas crespas cantam porque o vento as afogou.
As estrelas estão dependuradas no céu e oscilam.
Nós as veremos descer ao mar como lágrimas.
As estrelas frias se desprenderão do céu
E ficarão boiando, as mãos brancas inertes, sobre as águas frias.
As estrelas serão arrastadas pelas correntes boiando nas águas imensas.

Seus olhos estarão fechados docemente
E seus seios se elevarão gelados e enormes
Sobre o escuro do tempo.


Augusto Frederico Schmidt