segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A fruta aberta


Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.

Agora sei as coisa como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.

Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.

Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.

Thiago de Mello

domingo, 30 de janeiro de 2011

A arte de comer picolé de chocolate


Você já viu um menino de três anos de idade comendo picolé de chocolate na praia?

Um desastre.

Picolé de chocolate derrete com líquida facilidade. Muito cremoso. E a praia tem vento e sol em abundância, o que faz derreter com ainda maior rapidez os picolés de chocolate.

O problema é que tenho um menino de três anos de idade que só quer comer picolé de chocolate, não aceita nenhum outro menos derretível.

Então é aquilo:

– Papai, me dá um picolé?

– Tcherto. Que tal um picolé de uva?

– Não. Eu quero de chocolate.

– E coco? Coco é tão bom... Adoro tudo com coco. Cocada, doce de coco, quindim...

– Quero de chocolate.

– Tangerina? Sabia que tangerina é o mesmo que bergamota?

– Chocolate!

Aí é aquela lambuzeira. O guri fica todo melado de chocolate, é chocolate na testa, no cabelo, nas bochechas e no nariz, chocolate escorrendo pelo queixo abaixo, chocolate no pescoço, no peito e na barriga, tem chocolate até nas pernas. Como pode um picolé tão pequeno conter tanto chocolate??? Vou reclamar com a fábrica.

Depois de toda essa melecação, sempre tento levá-lo para se lavar no mar, mas alguns meninos de três anos de idade, além de ter adoração por picolé de chocolate, têm medo das ondas. O meu não entra no mar de jeito nenhum. Quer dizer: dá o maior trabalho carregá-lo até o chuveirinho da rua, lá adiante, até porque tenho que pegá-lo no colo no meio do trajeto, o que faz com que eu também fique melecado de chocolate.

Agora mesmo, lá estávamos nós na areia da praia, e o Bernardo, ao ver o carrinho do sorveteiro, não se limitou a pedir um picolé: disparou atrás, pegou a corneta do homem, começou a apertá-la, fazendo todo mundo rir. Fui lá.

– Quer um picolé de limão, filhinho?

– Não. Quero de chocolate.

– E melão? Tem de melão, moço?

– CHOCOLATE!

– O problema do picolé de chocolate é que derrete e te deixa todo melecado. Aí vêm as abelhas.

Ele me olhou. O sorveteiro também me olhou.

– Abelhas? – perguntou o Bernardo.

– É. Aqui na Orla há milhares de abelhas. Milhões, até. A Orla é assim. E elas adoram doce. Sempre atacam quem está lambuzado de doce, sobretudo de chocolate. É horrível.

– Holível?

– É. Até porque essas abelhas daqui são abelhas assassinas.

O sorveteiro arregalou os olhos. O Bernardo também.

– Abelhas... assassinas??? – espantou-se ele.

– Assassinas! Muitos já foram mortos por elas. Morrem embolotados como se fossem pizzas de calabresa gigantes.

Nesse ponto, o Bernardo sorriu. Depois riu. Por fim, emitiu uma gargalhadinha de três anos de idade. E concluiu, usando a forma de tratamento que aprendeu na TV:

– Você é englaçado, papai...

Preciso admitir duas coisas:

Coisa número 1: meu filho me conhece.

Coisa número 2: ele mereceu aquele maldito picolé de chocolate.

David Coimbra

ZH 29/01/2011

sábado, 29 de janeiro de 2011

Os meninos do Brasil



Os morros cariocas foram retomados pelo Estado.

Os bandidos estão presos, mortos ou em fuga. Melhor: estão desarmados, desalojados e desnorteados.

Isso significa que não haverá mais sequestro-relâmpago em Porto Alegre, que se pode caminhar à noite pelo Centro, que você pode deixar aberta aporta de casa quando for dormir, que não haverá mais roubo de carros na Floresta?

Não.

Tudo isso continuará acontecendo.

Mais: os crimes no Rio continuarão acontecendo.

O que houve foi uma derrubada dos quartéis-generais do tráfico, uma vitória sobre uma casta de criminosos que havia se incrustado em uma região do Rio de Janeiro.

O que houve foi uma ação do Estado onde antes só existia omissão. E isso é positivo. As forças de segurança enfim atuaram com energia na repressão.

Só que essa é a palavra: repressão. É o remédio ministrado depois de o mal ter se instalado.

Para que o mal seja debelado de fato, as CAUSAS têm de ser combatidas.

E as causas da criminalidade, dos acidentes de trânsito, do vício das drogas, da corrupção, da furação de filas, das brigas de bar, dos maus-tratos às crianças, da violência contra a mulher, da insegurança nos estádios de futebol, da sujeira das ruas, da pichação nas paredes, da agressão ao meio-ambiente, dos estupros, da lotação dos presídios, da fome e da qualidade da música brasileira atual, as causas de todos esses males são só uma: FALTA DE EDUCAÇÃO!!!

E não basta educação formal, há muita gente que preenche formulários dizendo que tem terceiro grau completo e que é mal-educada.

Refiro-me à educação ampla, educação de fundo moral, educação que leve em conta OS VALORES do homem e não apenas a habilidade em conjugar verbos ou recitar a fórmula de Baskara.

Eu esqueceria os adultos do Brasil.

Eu só investiria nas crianças.

Esta geração, a nossa geração, está perdida. É uma geração para a qual só resolvem medidas paliativas, como a tomada dos morros do Rio.

As nossas crianças, não.

As nossas crianças, se forem salvas, podem salvar o Brasil.

David Coimbra
ZH 29/11/2010

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O que quer uma mulher


Um bebê nasce. O médico anuncia: é uma menina! A mãe da criança,
então, se põe a sonhar com o dia em que a sua princesinha terá um
namorado de olhos verdes e casará com ele, vivendo feliz para sempre.
A garotinha ainda nem mamou e já está condenada a dilacerar corações.
Laçarotes, babados, contos de fadas: toda mulher carrega a síndrome de Walt Disney.
Até as mais modernas e cosmopolitas têm o sonho secreto de encontrar um príncipe encantado. Como não existe um Antonio Banderas para todas, nos conformamos com analistas de sistemas, gerentes de marketing, engenheiros mecânicos. Ou mecânicos de oficina mesmo, a situação não anda fácil. Serão eles desprezíveis? Que nada. São gentis, nos ajudam com as crianças, dão um duro danado no trabalho e têm o maior prazer em nos levar para jantar. São príncipes à sua maneira, e nós, cinderelas improvisadas, dizemos sim! sim! sim! diante do altar; mas, lá no fundo, a carência existencial herdada no berço jamais será preenchida.


Queremos ser resgatadas da torre do castelo. Queremos que o nosso
pretendente enfrente dragões, bruxas, lobos selvagens. Queremos que
ele sofra, que vare a noite atrás de nós, que faça tudo o que o José
Mayer, o Marcelo Novaes e o Rodrigo Santoro fazem nas novelas.
Queremos ouvir "eu te amo" só no último capítulo, de preferência num
saguão de aeroporto, quando ele chegará a tempo de nos impedir de
embarcar.
O amor na vida real, no entanto, é bem menos arrebatador. "Eu te amo" virou uma frase tão romântica quanto "me passa o açúcar". Entre casais, é mais fácil ouvir eu "te amo" ao encerrar uma ligação
telefônica do que ao vivo e a cores. E fazem isso depois de terem se
xingado por meia-hora. "Você vai chegar tarde de novo? Tenha a santa paciência, o que é que você tanto faz nesse escritório? Ontem foi a mesma coisa, que inferno! Eu é que não vou prepar o jantar para você às dez da noite, te vira. Tchau, também te amo." E batem o telefone possessos.


Sim, sabemos que a vida real não combina com cenas hollywoodianas.
Sabemos que há apenas meia dúzia de castelos no mundo, quase todos
abertos à visitação de turistas. Sabemos que os príncipes, hoje, andam
meio carecas, usam óculos e cultivam uma barriguinha de chope. Não são heróicos nem usam capa e espada, mas ao menos são de carne e osso, e a maioria tentaria nos resgatar de um prédio em chamas, caso a escada magirus alcançasse o nosso andar. Não é nada, não é nada, mas já é alguma coisa.
Dificilmente um homem consegue corresponder à expectativa de uma
mulher, mas vê-los tentar é comovente. Alguns mandam flores, reservam quarto em hotéizinhos secretos, surpreendem com presentes, passagens aéreas, convites inusitados. São inteligentes, charmosos, ousados, corajosos, batalhadores.
Disputam nosso amor como se estivessem numa guerra, e pra quê? Tudo o que recebem em troca é uma mulher que não pára de olhar pela janela, suspirando por algo que nem ela sabe direito o que é. .........


Perdoem esse nosso desvio cultural, rapazes. Nenhuma mulher se sente amada o suficiente.

Martha Medeiros.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Caminhos




Você me pergunta
Aonde eu quero chegar
Se há tantos caminhos na vida
E pouca esperança no ar
E até a gaivota que voa
Já tem seu caminho no ar
O caminho do fogo é a água
O caminho do barco é o porto
O do sangue é o chicote
O caminho do reto é o torto
O caminho do bruxo é a nuvem
O da nuvem é o espaço
O da luz é o túnel
O caminho da fera é o laço
O caminho da mão é o punhal
O do santo é o deserto
O do carro é o sinal
O do errado é o certo
O caminho do verde é o cinzento
O do amor é o destino
O do cesto é o cento
O caminho do velho é o menino
O da água é a sede
O caminho do frio é o inverno
O do peixe é a rede
O do vil é o inferno
O caminho do risco é o sucesso
O do acaso é a sorte
O da dor é o amigo
O caminho da vida é a morte!

“E você ainda me pergunta:
aonde é que eu quero chegar,
se há tantos caminhos na vida
e pouquíssima esperança no ar!
E até a gaivota que voa
já tem seu caminho no ar!”

O caminho do risco é o sucesso
O acaso é a sorte
O da dor é o amigo
O caminho da vida é a morte!

sábado, 22 de janeiro de 2011

No mundo da letras


Vem à livraria nas horas de maior movimento, mas isso, já se sabe, é de propósito: facilita-lhe o trabalho.

Rouba livros. Faz isso há muitos anos, desde a infância, praticamente. Começou roubando um texto escolar que precisava para o colégio: foi tão fácil que gostou; e passou a roubar romances de aventura, livros de ficção científica, textos sobre arte, política, ciência, economia. Aperfeiçoou tanto a técnica que chegava a furtar quatro, cinco livros de uma vez. Roubou livros em todas as cidades por onde passou. Em Londres, uma vez, quase o pegaram; um incidente que recorda com divertida emoção.

No início, lia os livros que roubava. Depois, a leitura deixou de lhe interessar. A coisa era roubar por roubar, por amor à arte; dava os livros de presente ou simplesmente os jogava fora. Mas cada vez tinha menos tempo para ir às livrarias; os negócios o absorviam demais. Além disso, não podia, como empresário, correr o risco de um flagrante. Um problema - que ele resolveu como resolve todos os problemas, com argúcia, com arrojo, com imaginação.

Zás! Acabou de surrupiar um. Nada de espetacular nessa operação: simplesmente pegou um pequeno livro e o enfiou no bolso. Olha para os lados; aparentemente ninguém notou nada. Cumprimenta-me e se vai.

Um minuto depois retorna. Como é que me saí, pergunta, não sem ansiedade. Perfeito, respondo, e ele sorri, agradecido. O que me deixa satisfeito; elogiá-lo é não apenas um ato de compaixão, é também uma medida de prudência. Afinal, ele é o dono da livraria.


Moacyr Scliar

Melhora logo !


quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Estrada


Estrada branca
Lua branca
Noite alta
Tua falta caminhando
Caminhando
Ao lado meu
Uma saudade
Uma vontade
Tão doida
De uma vida
Vida que morreu

Estrada passarada
Noite clara
Meu caminho é tão sozinho
Tão sozinho
A percorrer
Que mesmo andando
Para a frente
Olhando a lua tristemente
Quanto mais ando
Mais estou perto
De você

Se em vez de noite
Fosse dia
O sol brilhasse
E a poesia
Em vez de triste
Fosse alegre
De partir
Se em vez de eu ver
Só minha sombra
Nessa estrada
Eu visse ao longo
Dessa estrada
Uma outra sombra
A me seguir

Mas a verdade
É que a cidade
Ficou longe, ficou longe
Na cidade
Se deixou meu bem-querer
Eu vou sozinho sem carinho
Vou caminhando meu caminho
Vou caminhando com vontade
de morrer

Vinicius de Moraes

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A busca insensata


Saindo à minha procura

fui por caminhos travessios

e vales e rios.

Pisei areias inumeráveis

bebi em muitos mananciais

e em sonhos escalei penedos que eram nunhos de relâmpagos.

Mas a minha sede - a de ser eu mesmo -

não se saciou jamais.


Ledo Ivo

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Neologismo


Beijo pouco, falo menos ainda.

Mas invento palavras

Que traduzem a ternura mais funda

E mais cotidiana.

Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.

Intransitivo:

Teadoro, Teodora.


Manuel Bandeira

domingo, 16 de janeiro de 2011

Uma lágrima no sinal vermelho


Vi o que vi debaixo do sinal vermelho de uma esquina da José de Alencar, perto do Olímpico. Aconteceu dias atrás, num desses dias azuis e amarelos de quase verão. Fazia uma tarde amena de sol, por isso estava com os vidros abertos, o que é raro. O sinal demorava a trocar. Lancei um olhar distraído por cima do ombro direito. O olhar espreguiçou-se para o mundo exterior e esbarrou no carro ao lado.

Então a vi.

Ela também mantinha os vidros abaixados. Havia apoiado o cotovelo na janela e a concha da mão cobria a orelha. Dentro da mão, um celular. Ela não falava; ouvia. E chorava.

A face esquerda do rosto reluzia das lágrimas que lhe caíam do canto do olho.

Fiquei chocado. Porque não havia lógica na cena. Não era uma jovem que chorava, mas uma senhora em idade madura, 60 anos, talvez. Fosse uma garota, seria mais verossímil. Uma garota chora se é rejeitada pelo namorado, ou se briga com o pai, ou se discute com uma amiga.

Uma mulher feita, em geral, já chorou o pranto que lhe cabia. Ela fica triste, ela fica amargurada ou fica até depressiva, mas é incomum que chore em campo aberto, acessível aos olhares que partem dos carros ao lado.

Só que ela chorava ali, sob o sinal.

Observei-a sem pudor, certo de que não havia reparado em mim. Desliguei o rádio do carro e apurei o ouvido. Por algum motivo, precisava de uma pista sobre com quem ela falava. O sinal ficou verde. Ela se aprumou no banco e engatou a primeira marcha. Ia-se embora, mas, antes de arrancar, balbuciou uma frase, a única que consegui captar:

– Está bem, meu filho…

E se foi, ziguezagueando pela floresta de lata do trânsito.

“Está bem, meu filho.” O filho a magoara, a ponto de ela chorar na rua. Lembrei de Maomé, o Profeta, que ensinou: “O paraíso está ao pé da mãe”. Lembrei de Freud, que disse não existir nenhum sentimento tão poderoso, tão incondicional, tão desprovido de agressividade como o da mãe pelo filho homem. E o filho homem reconhece esse sentimento, e esse sentimento se transforma na sua referência emocional sobre a Terra. Não é por acaso que os soldados feridos de morte, desamparados no campo de batalha, gritam pela mãe. Homens adultos clamando pela mãe feito meninos no escuro do quarto.

Também não foi por acaso que, dias atrás, um filho pediu que a mãe o ajudasse a ocultar o cadáver de uma moça que ele havia assassinado, e a mãe o atendeu.

Constatei eu mesmo a força desse sentimento nas vezes em que fui fazer palestras na Fase. Os meninos delinquentes lá recolhidos, meninos bandidos, muitos deles perigosos, eles, quando tentam se tornar pessoas melhores, o fazem pensando na mãe. A mãe faz com que se importem consigo mesmos. Porque é assim: você só quer ser melhor do que é por causa do amor dos outros.

Aquela mãe que chorava sob o semáforo, ela parecia ser esse tipo de mãe amorosa, que é capaz de morrer pelo filho. Por que, então, ele a fizera chorar? Poucas coisas são mais tristes para um filho do que causar desgosto a sua mãe.

Fiquei triste por aquela mulher que chorava e pelo filho que motivara o choro. No futuro, tenho certeza, ele vai lamentar aquele diálogo via celular. Gostaria de poder fazer algo a respeito. Bem… fiz. Liguei para a minha mãe.


David Coimbra

ZH 25/12/2010

sábado, 15 de janeiro de 2011

Esperança


No porto dos meus anseios

esperanças são navios,

que de manhã partem cheios

e à tarde voltam vazios.


Orlando Brito

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Receita para se fazer um herói


Pega-se um homem,

Feito de nada como nós,

Em tamanho natural;

Embebe-se-lhe a carne

De um jeito irracional

Com a fome, com o ódio.


Depois, perto do fim,

Levanta-se o pendão

E toca-se o clarim ...


Serve-se morto.


Edgard Scandurra

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A galinha voadora


Ainda o meu azar. Esses dias estava passando o filme Cinema Paradiso, num cinema do Interior. Lá fui eu assistir a ele, levei duas horas de carro, me disseram que esse filme era imperdível e só estava passando lá (não cito o nome da cidade para não deixá-la mal afamada).


No meio do filme, alguns garotos resolveram jogar lá do mezanino uma galinha viva, que quando passou diante da luz do projetor se refletiu na tela com as asas batendo.

Havia 500 pessoas no cinema. Adivinhem em cima de quem a galinha caiu? Exatamente em cima da minha cabeça. Devia ter sofrido grande susto aquela galinha: sujou todo meu pescoço de cocô.

Saí na metade do filme, completamente ridicularizado pelas gargalhadas dos outros espectadores.

Isso, lhes juro, só acontece comigo.

Paulo sant'Ana
Zero Hora 18/12/2007

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Único caminho



No tempo em que o Espírito habitava a terra
E em que os homens sentiam na carne a beleza da arte
Eu ainda não tinha aparecido.
Naquele tempo as pombas brincavam com as crianças
E os homens morriam na guerra cobertos de sangue.
Naquele tempo as mulheres davam de dia o trabalho da palha e da lã
E davam de noite, ao homem cansado, a volúpia amorosa do corpo.

Eu ainda não tinha aparecido.

No tempo que vinham mudando os seres e as coisas
Chegavam também os primeiros gritos da vinda do homem novo
Que vinha trazer à carne um novo sentido de prazer
E vinha expulsar o Espírito dos seres e das coisas.

Eu já tinha aparecido.

No caos, no horror, no parado, eu vi o caminho que ninguém via
O caminho que só o homem de Deus pressente na treva.
Eu quis fugir da perdição dos outros caminhos
Mas eu caí.
Eu não tinha como o homem de outrora a força da luta
Eu não matei quando devia matar
Eu cedi ao prazer e à luxúria da carne do mundo.
Eu vi que o caminho se ia afastando da minha vista
Se ia sumindo, ficando indeciso, desaparecendo.
Quis andar para a frente.
Mas o corpo cansado tombou ao beijo da última mulher que ficara.

Mas não.
Eu sei que a Verdade ainda habita minha alma
E a alma que é da Verdade é como a raiz que é da terra.
O caminho fugiu dos olhos do meu corpo
Mas não desapareceu dos olhos do meu espírito
Meu espírito sabe ...
Ele sabe que longe da carne e do amor do mundo
Fica a longa vereda dos destinados do profeta.
Eu tenho esperanças, Senhor.
Na verdade o que subsiste é o forte que luta
O fraco que foge é a lama que corre do monte para o vale.
A águia dos precipícios não é do beiral das casas
Ela voa na tempestade e repousa na bonança.

Eu tenho esperanças, Senhor.
Tenho esperanças no meu espírito extraordinário
E tenho esperança na minha alma extraordinária.
O filho dos homens antigos
Cujo cadáver não era possuído da terra
Há de um dia ver o caminho de luz que existe na treva
E então, Senhor
Ele há de caminhar de braços abertos, de olhos abertos
Para o profeta que a sua alma ama mas que seu espírito ainda não possuiu .



Vinícius de Moraes

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O plantador de sonhos



O lavrador prepara a terra, lentamente.
Cultiva o solo com amor.
Alimenta o chão com carinho e devoção.
Cuidadoso, escolhe a semente.
E faz a plantação.
Semeia o trigo e nasce o joio.
Paciente, reinicia.
Planta roseira e brota baobá.
Cauteloso, extirpa-o.
E recomeça.
A vegetação viça.
Súbito, vem o estio.
As plantas secam.
E continua...
A flor renasce.
E vem a inundação.
Não desiste.
Rega a poesia.
Na certeza de um dia,
colher a flor tardia.

Fernanda Benevides

sábado, 8 de janeiro de 2011

Dois ...



Apenas dois.
Dois seres...
Dois objetos patéticos.
Cursos paralelos
Frente a frente...
...Sempre...
...A se olharem...
Pensar talvez:
“Paralelos que se encontram no infinito...”
No entanto sós por enquanto.
Eternamente dois apenas.


Pablo Neruda

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Duas almas



Ó tu, que vens de longe,
ó tu, que vens cansada,
entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

Alceu Wamosy

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Memória


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.



Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Grandes e pequenas mulheres


Há mulheres de todos os gêneros. Histéricas, batalhadoras, frescas, profissionais, chatas, inteligentes, gostosas, parasitas, sensacionais. Mulheres de origens diversas, de idades várias, mulheres de posses ou de grana curta. Mulheres de tudo quanto é jeito. Mas se eu fosse homem prestaria atenção apenas num quesito: se a mulher é do tipo que puxa pra cima ou se é do tipo que empurra pra baixo.

Dizem que por trás de todo grande homem existe uma grande mulher. Meia-verdade. Ele pode ser grande estando sozinho também. Mas com uma mulher xarope ele não vai chegar a lugar algum.

Mulher que puxa pra cima é mulher que aposta nas decisões do cara, que não fica telefonando pro escritório toda hora, que tem a profissão dela, que o apóia quando ele diz que vai pedir demissão por questões éticas e que confia que vai dar tudo certo.

Mulher que empurra pra baixo é a que põe minhoca na cabeça dele sobre os seus colegas, a que tem acessos de carência bem na hora que ele tem que entrar numa reunião, a que não avaliza nenhuma mudança que ele propõe, a que quer manter tudo como está.

Mulher que puxa pra cima é a que dá uns toques na hora de ele se vestir, a que não perturba com questões menores, a que incentiva o marido a procurar os amigos, a que separa matérias de revista que possam interessá-lo, a que indica livros, a que faz amor com vontade.

Mulher que empurra pra baixo é a que reclama do salário dele, a que não acredita que ele tenha taco pra assumir uma promoção, a que acha que viajar é despesa e não investimento, a que tem ciúmes da secretária.

Mulher que puxa pra cima é a que dá conselhos e não palpite, a que acompanha nas festas e nas roubadas, a que tem bom humor.

Mulher que empurra pra baixo é a que debocha dos defeitos dele em rodinhas de amigos e que não acredita que ele vá mais longe do que já foi.

Se por trás de todo grande homem existe uma grande mulher, então vale o inverso também: por trás de um pequeno homem talvez exista uma mulherzinha de nada.


Martha Medeiros

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Chatos com grife


Escrevi sobre os chatos anteontem, mas para mim o tema não se esgota.
O chato possui muito mais tempo do que a gente. Aliás, só não suportamos os chatos porque não temos tempo.
Se tivéssemos tempo, nós também seríamos chatos: toda pessoa que tem tempo e não se entrega por isto à solidão é uma chata.
Podem olhar: todas as pessoas que não usam relógio no pulso são chatas. Por isto é que se diz que o chato não tem noção do tempo. Eu, por exemplo, conheço um sujeito que sempre foi considerado o “chato do seu tempo”.
O chato parece que desfruta de mais de 24 horas por dia. Para chatear.
Outra coisa: o chato pode ser chato, mas ele é sempre polido. Ele sempre se apresenta cheio de mesuras para nos chatear.
Nunca se ouviu dizer que um chato foi grosseiro. Eles são até delicados demais, a menos que o finjam para nos engrupir com sua abordagem.
É que o chato precisa empregar delicadeza e jeito para puxar conversa conosco e exercitar sua chatice.
Se não tiver habilidade, será rechaçado pelos maus modos, o que o impedirá de nos chatear.
Sendo assim, não existe chato calado. Nem existe chato antipático. A única coisa antipática no comportamento de um chato é a sua chatice. Não fosse ela, o chato seria uma amizade sedutora.
Os chatos são tão visados que adquirem grife. Existe, por exemplo, o Chato do Barranco, também o Chato do Gambrinus, o Chato do Galeto do Marquês. O Chato do Pampulhinha, o Chato do Dado Bier.
No Panchos, por exemplo, o Chato do Panchos é sempre posto pelo dono do restaurante na pior mesa, aquela do canto, lá longe, para causar-lhe mais dificuldade nas abordagens com os outros clientes.
A pior coisa que pode acontecer a um restaurante é ter mais de um chato, em seguida ele se esvazia.
Um chato por restaurante é uma dose razoável.
O pior é quando o chato é o dono do restaurante. A primeira atitude do chato que é dono do restaurante é a de sentar à mesa do cliente, pedindo ou não licença.
Esses dias, me encontrei num restaurante com um cara que me chateou tão arduamente, que ameacei: “Se continuar me chateando, vou chamar o dono deste restaurante”.
E o chato: “Sou eu mesmo, estás falando com ele”.
Levantei e fui para outro restaurante, onde pelo menos o chato não era o dono.
Eu estou ficando chato de tanto colecionar chatos. Talvez eu detecte tão bem os chatos por pertencer à categoria deles.
Casaram-se esses dias o otorrinolaringologista Sady Selaimen da Costa e a fonoaudióloga Sílvia Dornelles, dois ases em suas profissões.
Sabem como é, se conhecem nas clínicas e nos hospitais, vão fazendo amizade, coleguismo, daí para o amor é um passo.
Foi assim que o Sady e a Sílvia se casaram este ano.
Sempre que me encontro com os dois, só eu falo, ele por se otorrino e ela fonoaudióloga, só escutam.
O casal comigo é todo ouvidos.

Paulo Santana
Zero Hora