sexta-feira, 31 de julho de 2009

Relógios


Ah! Os Relógios


Amigos, não consultem os relógios

quando um dia eu me for de vossas vida

sem seus fúteis problemas tão perdidas

que até parecem mais uns necrológios...


Porque o tempo é uma invenção da morte:

não o conhece a vida - a verdadeira -

em que basta um momento de poesia

para nos dar a eternidade inteira.


Inteira, sim, porque essa vida eternas

omente por si mesma é dividida:

não cabe, a cada qual, uma porção.


E os Anjos entreolham-se espantados

quando alguém - ao voltar a si da vida -

acaso lhes indaga que horas são...


Mario Quintana

Os Poemas



Os poemas são pássaros que chegam

não se sabe de onde e pousam

no livro que lês.


Quando fechas o livro, eles alçam vôo

como de um alçapão.


Eles não têm pouso

nem porto

alimentam-se um instante

em cada par de mão

se partem.


E olhas, então, essas tuas mãos vazias,

no maravilhado espanto de saberes

que o alimento deles já estava em ti...


Mario Quintana

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Dubitativo



Poeminha Dubitativo


Não,

Eu não tenho medo do fim.

Mas,

E se o mundo terminar

Antes de mim?


Millôr Fernandes

Identidade


Poema Ficha Identidade


Nome:

Quem ou qualquer,

Em código binário.


Data de nascimento:

Já esqueci.

Mas foi há quase sempre.


Ambições:

Não quero.

Se quero, não me dão.

Não peço.

Não ofereço.


Deveres:

Completar o trajeto.

Trocar as ferraduras.

Religião

:Resumo de todas

As descrenças.

Desprezo por quem acha

Que existe o que não há.


Até onde?

Até o fim do espaço

De que me deram,

Do limite do tempo.

Que não tenho.


Resumo:

Conservar o espanto constante,

De dois olhos.

E ver.

Conhecer lugares gravados

Em olhos cegos.


Millôr Fernandes

Retrato


Retrato


Comendo em cantos

Desconfiado

Quente e lustroso

Curvo e sedoso

Esgar de boca

Rasgado grito

Quando assustado

Bigode hirto

Andar felino

E feminino

Olhar que acende

A luz que apaga

A ronroneira

Quando ressona

O encolhimento

Antes do salto

Filosofia

Do diaadia

Falso abandono

Ante seu dono

Um ódio eterno

A seu inimigo

Expressão mística

De um Egito antigo

Olhos de outrora

Se entramos tarde

Da madrugada

Se é dia claro

Ou é luz morna

Quando entardece

Tem infantil

Uma pata esquerda

Que rola a bola,

Que rola o rolo

Que furta o bolo.

Esse o retrato

De um bicho esquivo

Chamado gato.


Millôr Fernandes 27.07.62

Poesia



Poetas são Gente

Eu vivo pra poesia mas poetas não vivem pra mim.


Espero que eles me alimentem como a um coelho faminto. Eles não sabem disso.


É melhor mesmo que não percebam o quanto são necessários. De outro modo seríamos ultrapassados por eles e eles não saberiam quando parar.


Um excesso de poetas não seria uma boa idéia pro nosso mundo. Nosso mundo necessita apenas de um certo número. Embora isso ainda não tenha sido atingido é importante que a poesia seja controlada.


Eu sei. Tenho observado poetas vagabundeando por aí, esperando o momento de atacar. É pior do que haker atacando. Uma visão horrível. A pessoa atacada correrá pela rua gritando. Pode até amaldiçoar o sistema, e fugir de casa levando sua filha com ele.


Poemas têm um jeito de infeccionar os pobres idiotas que os escrevem.


Poetas ficam em silêncio durante conversações, esperando uma brecha.


Subitamente, sem aviso, um poeta falará uma sentença que acabou de pensar, e aqueles em volta gritarão como que atingidos por um curto-circuito.


Você gostaria que isso acontecesse freqüentemente? Levaria meses pra se voltar a qualquer aparência de normalidade. Isso pode ser uma boa de vez em quando, como mudança. Mas pára um momento e procura imaginar o pessoal do governo de Sua Majestade todos os dias fazer suas transmissões, como faz, mas cada uma ser um poderoso poeta.


A confusão seria indescritível. A nação ia parar nos trilhos e colher flores pros vizinhos. Carros iriam se abalroar no tráfego pros motoristas saltarem e apertarem as mãos. Greves seriam desnecessárias pois ninguém trabalharia. A vida seria boa demais pra se perder. Cada dia seria vivido sem plano e cada momento saboreado como vinho novo. Cada pôr-do-sol seria uma revelação e uma promessa pra amanhã.


Todo mundo faria amor. Mesmo os doentes.


Melhor seria os poetas não usarem palavras.


Melhor que nascessem mudos. Melhor que cortasssem as línguas, se falassem. E melhor ainda, se pensassem, ficassem em silêncio.


Deus nos proteja de suas invocações ferozes, pelo menos até termos tempo de praticar exercícios de poetas mortos, pra estarmos em forma a fim de tentar hoje outra vez.


Poetas não percebem.


Enquanto vivem são eras daninhas.


Quando morrem são fertilizantes.
Millôr Fernandes

terça-feira, 28 de julho de 2009

Eu não preciso



Eu não preciso de almofada


Q uando participo de bate-papos públicos, geralmente em escolas, costumo ser perguntada sobre de onde vêm os assuntos para escrever uma crônica, e aqui está um bom exemplo do quão inusitado pode ser o caminho da inspiração: conversando outro dia sobre decoração de ambientes, um defensor da linha franciscana de morar me disse a frase que acabei de utilizar no título acima: “Eu não preciso de almofada”.


Ao escutá-lo, olhei para os lados, disfarçadamente. Estávamos cercados por mais ou menos 25 almofadas de todas as cores, tamanhos e origens. Na minha sala e escritório tenho quatro sofás (e mais dois na sacada) e todos eles são cobertos de almofadas indianas, nordestinas, uruguaias: minha casa é o albergue internacional das almofadas. É só colocar o pé para fora de Porto Alegre e está feito: na bagagem, dobradinha, vem mais uma capa de almofada que trago do Rio, de Buenos Aires, de Gramado, de Fortaleza. É o que dispara meu lado consumista. Mas, claro, eu também não preciso de almofada.


Tampouco preciso de flores, mesmo que na minha casa nunca deixarão de ser encontrados ao menos três vasos com astromelias de cores variadas: amarelas, laranjas, fúcsias. E, no mínimo, duas orquídeas. Também gerânios que parecem pequenas margaridas. Alguns ficus, bromélias. E, quando o saldo da conta corrente permite, lírios brancos. Mas eu preciso de flores? Era só o que me faltava.


Também não preciso de tapetes. O fato de minha casa parecer uma loja turca é só para evitar desconforto aos que andam descalços. Não preciso de cortinas também, mas um dia encasquetei que a casa pareceria mais aquecida e acolhedora com elas, e aí gastei dinheiro bobamente com uns tecidos de linho cru e palha da índia. Frescura.Também não preciso de música. Nem tenho lugar para guardar tanto CD. Coisa mais antiga, CD.


Também não preciso de portarretrato, sei de memória o rosto das minhas filhas, mesmo o de quando elas eram crianças. Não preciso de castiçais, já que tenho energia elétrica. Não preciso de estantes abarrotadas de livros, coisa mais inútil, e eles ainda acumulam pó. Não preciso de quadro: ninguém presta atenção mesmo e furar paredes é um troço que às vezes dá errado. Não preciso de esculturas. Não preciso de abajur. Não preciso de espelhos. Não preciso de guardanapos de pano. Não preciso de toalhas estampadas. Não preciso de caixinhas compradas em feiras e briques. Não preciso de lembranças de viagem. Não preciso de lembranças. Não preciso de viagens.


E poderia prosseguir dizendo que não preciso de cor, não preciso de beleza, não preciso de sonho, não preciso de arte, não preciso de criatividade, não preciso de diversão, não preciso de prazer, não preciso de senso estético, não preciso de humor e também não preciso traduzir minha alma e minha história de vida em tudo o que me cerca. Mas isso equivaleria a dizer que eu não preciso de mim.


É isso, garotada. Até mesmo uma simples almofada pode gerar uma reflexão.

Martha Medeiros
Zero Hora 26/7/09

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Deus


Deus


Eu me lembro! Eu me lembro! – Era pequeno

E brincava na praia; o mar bramia,

E, erguendo o dorso altivo, sacudia,

A branca espuma para o céu sereno.


E eu disse a minha mãe nesse momento:

“Que dura orquestra! Que furor insano!

Que pode haver de maior do que o oceano

Ou que seja mais forte do que o vento?”


Minha mãe a sorrir, olhou pros céus

E respondeu: – Um ser que nós não vemos,

É maior do que o mar que nós tememos,

Mais forte que o tufão, meu filho, é Deus.


Casimiro de Abreu

Amar


Amar


Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer,

amar e malamar,

amar, desamar, amar?

sempre, e até de olhos vidrados,

amar?


Que pode, pergunto,

o ser amoroso,

sozinho, em rotação universal,

senão rodar também, e amar?

amar o que o mar traz à praia,

e o que ele sepulta,

e o que, na brisa marinha,

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?


Amar solenemente as palmas do deserto,

o que é entrega ou adoração expectante,

e amar o inóspito, o áspero,

um vaso sem flor, um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho,

e uma ave de rapina.


Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.


Amar a nossa falta mesma de amor,

e na secura nossa

amar a água implícita,

e o beijo tácito,

e a sede infinita.


Carlos Drummont de Andrade

Se eu morresse amanhã!


Se Eu Morresse Amanhã

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n’alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã…
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

Alvares de Azevedo

sexta-feira, 24 de julho de 2009

A mulher e a patroa



A MULHER E A PATROA.


Há homens que têm patroa.


Ela sempre está em casa quando ele chega do trabalho. O jantar é rapidamente servido à mesa. Ela recebe um apertão na bochecha.

A patroa pode ser jovem e bonita, mas tem uma atitude subserviente, o que lhe confere um certo ar robusto, como se fosse uma senhora de muitos anos atrás.


Há homens que têm mulher.


Uma mulher que está em casa na hora que pode, às vezes chega antes dele, às vezes depois. Sua casa não é sua jaula nem seu fogão é industrial. A mulher beija seu marido na boca quando o encontra no fim do dia e recebe dele o melhor dos abraços. A mulher pode ser robusta e até meio feia, mas sua independência lhe confere um ar de garota, regente de si mesma.

Há homens que têm patroa, e mesmo que ela tenha tido apenas um filho, ou um casal, parece que gerou uma ninhada, tanto as crianças a solicitam e ela lhes é devota. A patroa é uma santa, muito boa esposa e muito boa mãe, tão boa que é assim que o marido a chama quando não a chama de patroa: mãezinha.


Há homens que têm mulher.


Minha mulher, Suzana. Minha mulher, Cristina. Minha mulher, Tereza.

Mulheres que têm nome, que só são chamadas de mãe pelos filhos, que não arrastam os pés pela casa nem confiscam o salário do marido, porque elas têm o dela. Não mandam nos caras, não obedecem os caras: convivem com eles.


Há homens que têm patroa.


Vou ligar pra patroa. Vou perguntar pra patroa. Vou buscar a patroa.

É carinho, dizem. Às vezes, é deboche. Quase sempre é muito cafona.

Há homens que têm mulher. Vou ligar para minha mulher. Vou perguntar para minha mulher. Vou buscar minha mulher.

Não há subordinação consentida ou disfarçada. Não há patrões nem empregados. Há algo sexy no ar.


Há homens que têm patroa.


Há homens que têm mulher.


E há mulheres que escolhem o que querem ser.


Martha Mdeiros

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Paixãozinha



Paixãozinha


A senhora gorda se apresentou para mim na porta do Hotel Beach Village, em Florianópolis.
Disse-me que não entende a discriminação contra as gordas, que ela sofre na carne. Falou que embora seja uma pessoa rica, com dezenas de imóveis escriturados em seu nome, não consegue encontrar nenhum homem para casar, vive com seus cachorros e gatos em Canela, sente a falta de um homem para compartilhar o resto de sua vida.


Eu disse a ela que não será difícil arranjar esse marido, ainda mais com o grande patrimônio que possui. Ela me respondeu que evidentemente não quer um homem que se case com ela só por seu dinheiro, mas que a queira bem.


Eu a incentivei com a frase genial do grande Nelson Rodrigues: "O dinheiro compra tudo, até amor sincero".


Ela continuou defendendo a tese de que tem mais atrativos além de sua fortuna: "Olha direito para mim; eu não sou uma paixãozinha?".


Disse que era, sim, uma gracinha e que levava uma vantagem sobre milhares de outras gordas: pelo menos poderia casar-se já como gorda e não fazer como tantas que se casam magras, esbeltas e atraentes e ficam gordas depois do casamento, traindo assim seus maridos, que investiram num caniço e receberam como dividendos uma bolha inchada.


Fiquei com pena daquela mulher, ela confirma o ditado de que dinheiro não traz felicidade. Achei que mais infeliz que ela só uma gorda pobre.


Porque a gorda pobre há de ser discriminada duas vezes, porque é gorda e porque é pobre.
Ai dos discriminados, ai das vítimas da natureza.

O problema reside exatamente nisso: a natureza faz as mulheres e homens feios e bonitos, gordos e magros, baixos e altos, burros e inteligentes.


E depois desta obra imperfeita da natureza, as pessoas desfavorecidas passam a ser discriminadas e as favorecidas se tornam privilegiadas.


Além disso, depois dessa obra injusta da natureza, vem o próprio homem e a sociedade e dão acabamento a esse parto horrendo: transformam os homens em ricos e pobres, poderosos e súditos, senhores e escravos.


Como, então, chegar à justiça social e à equanimidade pessoal? Como? Se os dotes das pessoas são desiguais, como torná-las idênticas e com as mesmas chances?


Em suma, a natureza, o destino, a Providência, seja qual for o nome do desígnio que preside a vida, é padrasto com os excluídos, sejam os gordos, sejam os baixinhos, sejam os burros, sejam os pobres, sejam os sem talento.


E se tudo já começa errado com a natureza, fica muito difícil para a mão humana consertá-lo.
Pobre da rica senhora gorda de Canela.


Todos desconhecem que ela é uma "paixãozinha".


Zero Hora 04/02/08

Meus secretos amigos



Tempos atrás fiquei sabendo que circula em todo o Brasil, pela internet, um célebre poema de Vinicius de Moraes, intitulado Amigos. No mês de julho, quando se comemora o Dia do Amigo, o poema é enviado por milhares de pessoas aos seus amigos.


Pois ainda vou acionar na Justiça por usurpação de direitos autorais as nove viúvas de Vinicius de Moraes. O texto, que reproduzo abaixo, é meu, foi publicado há anos no jornal Zero Hora sob o título Meus Secretos Amigos e faz parte do meu primeiro livro, O Gênio Idiota.




Meus secretos amigos


Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos.


Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles...

Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!

Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus amigos e o quanto minha vida depende de suas existências…
A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem.

Essa mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida.

Porque não os procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles!


Eles não iriam acreditar!

Muitos deles estão lendo esta crônica e não sabem que estão incluídos na sagrada relação dos meus amigos, mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro, embora não o declare e não os procure.
Às vezes, quando os procuro, noto que eles não têm noção de como me são necessários, de como são indispensáveis ao meu equilíbrio vital, porque fazem parte do mundo que eu, tremulamente, construí e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida.
Se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado.

Se todos morrerem, eu desabo!

Por isso é que, sem que eles saibam, eu rezo pela vida deles e me envergonho porque essa minha prece é, em síntese, dirigida ao meu bem-estar.

Ela é, talvez, fruto do meu egoísmo.
Por vezes, mergulho em pensamento sobre alguns deles.

Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto de mim, compartilhando daquele prazer…

Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos e, principalmente, os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber que são meus verdadeiros amigos.


A gente não faz amigos, reconhece-os.


Zero Hora 15/ 04/94

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Saudade



Saudade



Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, dóem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim.




Mas o que mais dói é saudade.




Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que já morreu. Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa. Dóem essas saudades todas. Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida.



Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o escritório e ele para o dentista, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã. Mas quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.



Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno. Não saber mais se ela continua pintando o cabelo de vermelho. Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu. Não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ele tem comido frango assado, se ela tem assistido as aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua surfando, se ela continua lhe amando.


Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.




Saudade é não querer saber se ele está com outra, e ao mesmo tempo querer. É não querer saber se ela está feliz, e ao mesmo tempo querer. É não querer saber se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim, doer.

domingo, 19 de julho de 2009

Quadrilha


Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava
Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos,
Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre,
Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 9 de julho de 2009

O sacristão distraído



O pequeno Giuseppe Verdi era um dedicado sacristão da paróquia de Bussetto quando ocorreu talvez o fato mais importante da sua vida. Bussetto fica a uns 10 quilômetros de Parma, cidade que legou à Civilização o filé à parmeggiana, o que, admitamos, é bem mais do que já fez a maioria das cidades do planeta Terra. Eu trocaria os dois títulos mundiais da dupla Gre-Nal pela glória de Porto Alegre ter concebido iguaria semelhante ao filé à parmeggiana. Já Bussetto, sua glória eterna é mesmo Verdi, o mais famoso compositor da Bota, onde o chamam de “O Cisne de Bussetto”.


Pois bem. Durante o ofício da missa de um domingo da primeira metade do século 19, a capela bussettense borbulhava de lotada, e o padre não conseguia, de jeito nenhum, chamar a atenção de seu sacristão.


— Pepino! – chamava o pároco, sussurrando. — Pepino!


E o Pepino nem aí.


In extremis, o padre deu um pisão no pé de Giuseppe, que recuou, assustado, e gritou:


– Para, padre!


Um escândalo. Os padres eram autoridades nas cidades italianas e, naquela época, as crianças não desafiavam os adultos. Dar uma ordem a um padre consistia, tão-somente, em afronta. Terminada a missa, o santo homem marchou até a área rural do município a fim de se queixar para o pai de Giuseppe. Estavam diante de um absurdo: o menino não se concentrava em suas tarefas, passava o tempo todo absorto pela música que emanava do coro e do órgão da igreja.


O pai de Giuseppe poderia puni-lo pela falta. Havia motivos para tal. Mas não. No dia seguinte, ele reuniu suas economias, deslocou-se até a cidade e voltou de lá com uma espineta, espécie de piano pequeno parecido com o cravo. Se o menino apreciava música, quem sabe residia dentro daquele peito estreito algum talento especial.


Mais do que especial, na verdade.


Giuseppe aprendeu a tocar a espineta sozinho e, em pouco tempo, tornou-se o primeiro organista da igreja de Bussetto.


Começava ali uma trajetória de luz.


Se o velho Verdi não fosse um homem sensível, se ele censurasse ou castigasse o filho por sua desatenção, em vez de perceber naquele aparente defeito um dom, se o velho Verdi não fosse assim sagaz, o mundo perderia um de seus maiores artistas, e o pobre Giuseppe talvez se transformasse num plantador de brócolis frustrado.


O ponto decisivo dessa história é o seguinte: é o porquê. Por que o pai de Verdi tomou aquela atitude? Por que ele gastou todo o seu dinheiro na compra da espineta e investiu na vocação do filho?


A resposta é: ele estava preparado para isso. Aquela região da Itália é reconhecida pelo seu amor à música, além do filé famoso e do queijo parmesão, pelo qual eu trocaria as três Libertadores da América gaúchas.


Um pai brasileiro, que tipo de talento um pai brasileiro seria capaz de identificar em seu filho? O da bola, é claro. O menino apresenta uma tendência para ser jogador, o pai corre a desenvolvê-lo, matricula-o numa escolinha, esforça-se para colocá-lo num clube. Evidentemente porque vale a pena ser jogador de futebol no Brasil. Trata-se de uma concreta possibilidade de ascensão social.


Mas, assim como eu trocaria as Libertadores e os Mundiais pela invenção de um filé e de um queijo ralado, trocaria a primazia no futebol pela valorização da Educação. Verdi, inclusive, só se tornou Verdi porque houve investimento em sua formação. Aos 18 anos, já um fenômeno regional, seu futuro sogro e protetor o enviou para Milão, a fim de aperfeiçoar os conhecimentos que ele adquirira por conta própria. Na academia (que hoje, aliás, leva seu nome), os mestres o rejeitaram: consideraram-no muito velho para o aprendizado e repudiaram seu jeito bruto de tocar piano: como Verdi aprendera na espineta e sem orientação, ele batia com força demasiada nas teclas, como se estivesse martelando uma bigorna. Seu mecenas, porém, não desistiu: pagou-lhe um professor particular. Verdi empenhou-se devotadamente aos estudos e logo se converteu em maestro, para gáudio de toda a Itália.


Uma bela história, mas que só foi possível porque alguns homens comuns, homens que a posteridade esqueceu, compreenderam que um gênio, ainda que nasça para ser gênio, tem, mais do que tudo, de fazer-se gênio. E ninguém se faz gênio sozinho.


David Coimbra
Publicado em 08/07/09 - Jornal Zero Hora

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Testamento


Testamento


O que não tenho e desejo

É que melhor me enriquece.

Tive uns dinheiros - perdi-os...

Tive amores - esqueci-os.

Mas no maior desespero

Rezei: ganhei essa prece.


Vi terras da minha terra.

Por outras terras andei.

Mas o que ficou marcado

No meu olhar fatigado,

Foram terras que inventei.


Gosto muito de crianças:

Não tive um filho de meu.

Um filho!... Não foi de jeito...

Mas trago dentro do peito

Meu filho que não nasceu.


Criou-me, desde eu menino

Para arquiteto meu pai.

Foi-se-me um dia a saúde...

Fiz-me arquiteto?

Não pude!


Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.

Não faço porque não sei.

Mas num torpedo-suicida

Darei de bom grado a vida

Na luta em que não lutei!


Manuel Bandeira