sábado, 28 de maio de 2011

Quando a gente vê



Quando a gente menos espera, desaparecem as duas últimas bolas de gude da gaveta.

Quando menos se espera, a gente não cabe mais no triciclo.

Quando a gente menos espera, ninguém mais convida para fogueira junina nenhuma.

Quando a gente menos espera, o carteiro deixa para sempre de vir.


Quando a gente menos espera, todas as calças que se usa perderam o friso.

Quando menos se espera, deixa-se de cogitar de usar sapatos de bico fino.

Quando menos se espera, os olhares dirigidos para nós não têm qualquer interesse.

Quando menos se espera, você constata que não anda mais tomando chá, almoçando ou jantando com ninguém.

Quando menos se espera, deixa-se de atender ao despertador por vários dias.

Quando a gente vê, não se tem mais força para puxar a rolha da garrafa de vinho.

Quando a gente vê, todas as outras pessoas estão se divertindo mais na vida do que nós.

Quando a gente vê, no nosso meio, todos estão sendo mais reconhecidos do que nós.

Quando a gente vê, deixa-se de não usar meias, depois deixa-se de usar meias, logo em seguida passa-se a usar meias de lãs.

Quando a gente vê, todos passam à nossa frente no trânsito e nós não passamos nunca à frente dos outros no trânsito.

Quando a gente vê, as multas de trânsito que nos chegam passaram a ser justas.

Quando a gente vê, começa a ser pervertido o primeiro sentido, a visão, em seguida a audição. Quando começa a perversão do paladar, então teme-se pelo tato e pelo olfato.

Quando a gente vê, primeiro escasseiam os amigos, depois os tempos de duração nos encontros com os que restaram.

Quando a gente vê, é quase campeão mas incrivelmente deixa escapar a vitória no final.

Quando a gente vê, tromba com o diagnóstico e fica torcendo só pelo prognóstico.
...
Paulo Sant'Ana
Zero Hora 17/05/2011

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Decisão




Deixei de falar
e pensar
não penso mais.

Deixei de escrever
também
deixei de ouvir.

Para mim
as palavras
morreram
definitivamente.

No entanto
conservo o olhar
e permaneço
diante do oceano
a me observar
partindo de mim
todos os dias
não sei exatamente
para onde.

Sempre que volto
trago pérolas
que devolvo
imediatamente ao mar.

Quando anoitece
adormeço
para a vida
e então
me deixo esquecer
sem respirar.

Álvaro Alves de Faria

terça-feira, 24 de maio de 2011

Poema alado



Soy feliz.
Quise escribir um verso
y describí un pájaro.
¿ Por qué soy feliz?
Porque voló, como todos los versos
y como todos los pájaros.

Susana Giraudo

segunda-feira, 23 de maio de 2011

O sonho da borboleta



Nasceu a borboleta no lugar
Onde moldou em seda o seu casulo.
Esticou as belas asas e num pulo,
Banhada pelo Sol pôs-se a bailar.

Poisou no colorido de uma flor.
Bebeu néctar até que se fartou.
Ébria, enlouqueceu, então dançou
Espalhando p'lo jardim a sua cor.

Sonhou-se gente a linda mariposa.
Sentiu-se a dona dos prados floridos,
Dançarina dos gestos coloridos:
— Mais bela do que as flores! — pensou vaidosa.

Um pardal viu a cor a esvoaçar
E saltou, apanhando o alimento.
A dança acabou sem um lamento!
— Borboleta!... que é do teu sonhar?!...

Humberto Soares Santa

sábado, 21 de maio de 2011

Anel de lata serve de aliança



Uma moeda antiga, uma almofada de alfinetes, uma pulseirinha colorida.
A gente se prende a uma coisa pequena, insignificante para o mundo, especial para nós. Não há como esclarecer o sentido da devoção.
É algo que combina com a alma mais do que com o corpo, que gira nas mãos como uma chave do pensamento.

Na infância, guardava uma pena de ganso dentro do estojo. Ai se algum colega tirasse do lugar. Minha irmã Carla usava uma correntinha de coração. A bijuteria barata seguiu pelo seu pulso vida afora. Nunca trocou por nenhum brilhante.



Eu senti o apego durante um voo de volta a Porto Alegre. Estava com um terno cinza, retrô, escrevendo no caderninho e, de repente, a caneta estourou. Demorei a perceber sua ação. A ponta transformou-se num soro, pingava cada vez mais grosso. Uma mancha de petróleo se espalhou pelo mar de linho. Eu me desesperei, peguei os guardanapos e comprimi as áreas atingidas pela tinta. Pedi ajuda para a aeromoça, que me alcançou um pano com água quente.

Redundei a poça ao esfregar o tecido, pichei sem querer as próprias roupas. A aeromoça me aconselhou:
– Por que não põe a caneta no lixo?




Apesar da sujeirada que causou, segurava a esferográfica o tempo todo. Protegia aquela peça suicida, de veias abertas.

– Por que não põe a caneta no lixo? – a aeromoça agora levantava a cesta, quase me ordenando.

– É verdade – disse, mas não a descartei. Bateu uma impotência. Fiquei com compaixão da caneta, do que ela havia anotado comigo, de sua fidelidade à minha letra.

Abandonaria o objeto quando ele mais precisava de mim. As roupas sujas não me doíam, mas a caneta gritava, era um osso de meu dedo. Porque ninguém iria se importar com ela, a não ser eu.



Sempre foi dessa forma: a caneta explodia em meu bolso e ia socorrê-la, alheio ao estrago que produzia em mim. Poderia ser uma Mont Blanc ou uma Bic. Não é pelo preço, e sim pelo misterioso valor emocional.

Se já temos uma relação obcecada e incompreensível com um simples pertence, imagine a loucura que é o nosso gosto amoroso. Desisti de justificar a um amigo o que sinto por uma mulher. Amor é muito pessoal. Não se explica. Não requer motivo. Talvez aquilo que seja o inferno para os outros seja o éden para mim. Nem procuro mais disfarçar as manchas.

Fabricio Carpinejar
Zero Hora 17/05/2011

sexta-feira, 20 de maio de 2011

a rosa / Chico Buarque e Djavan




Arrasa o meu projeto de vida
Querida, estrela do meu caminho
Espinho cravado em minha garganta
Garganta
A santa às vezes troca meu nome
E some

E some nas altas madrugada
Coitada, trabalha de plantonista
Artista, é doida pela Portela
Ói ela
Ói ela, vestida de verde e rosa

A Rosa garante que é sempre minha
Quietinha, saiu pra comprar cigarro
Que sarro, trouxe umas coisas do Norte
Que sorte, voltou toda sorridente

Demente, inventa cada carícia
Egípcia, me encontra e me vira a cara
Odara, gravou meu nome na blusa
Abusa, me acusa
Revista os bolsos da calça

A falsa limpou a minha carteira
Maneira, pagou a nossa despesa
Beleza, na hora do bom me deixa, se queixa
A gueixa
Que coisa mais amorosa
A Rosa

Ah, Rosa, e o meu projeto de vida
Querida, estrela do meu caminho
Espinho cravado em minha garganta
Garganta
A santa às vezes me chama Alberto
Alberto

Decerto sonhou com alguma novela
Penélope, espera por mim bordando
Suando, ficou de cama com febre
Que febre
A lebre, como é que ela é tão fogosa
A Rosa

A Rosa jurou seu amor eterno
Meu terno ficou na tinturaria
Um dia me trouxe uma roupa justa
Me gusta, me gusta
Cismou de dançar um tango

Meu rango sumiu lá da geladeira
Caseira, seu molho é uma maravilha
Que filha, visita a família em Sampa
Às pampa, às pampa
Voltou toda descascada

A fada, acaba com a minha lira
A gira, esgota a minha laringe
Esfinge, devora a minha pessoa
À toa, a boa
Que coisa mais saborosa
A Rosa

Ah, Rosa, e o meu projeto de vida?
Bandida, cadê minha estrela guia?
Vadia, me esquece na noite escura
Mas jura
Me jura que um dia volta pra casa

Chico Buarque

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Vi todas as coisas



Vi todas as coisas, maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse,
Amei e odiei como toda a gente,

Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo.

E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.


Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

terça-feira, 17 de maio de 2011

Gosto quando te calas



Gosto quando te calas porque estás como ausente,
e me ouves de longe, minha voz não te toca.
Parece que os olhos tivessem de ti voado
e parece que um beijo te fechara a boca.

Como todas as coisas estão cheias da minha alma
emerge das coisas, cheia da minha alma.
Borboleta de sonho, pareces com minha alma,
e te pareces com a palavra melancolia.

Gosto de ti quando calas e estás como distante.
E estás como que te queixando, borboleta em arrulho.
E me ouves de longe, e a minha voz não te alcança:
Deixa-me que me cale com o silêncio teu.

Deixa-me que te fale também com o teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
És como a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão longinqüo e singelo.

Gosto de ti quando calas porque estás como ausente.
Distante e dolorosa como se tivesses morrido.
Uma palavra então, um sorriso bastam.
E eu estou alegre, alegre de que não seja verdade.




Pablo Neruda

terça-feira, 10 de maio de 2011

Mães



Antes de ser mãe, eu fazia e comia
os alimentos ainda quentes.
Eu não tinha roupas manchadas,
tinha calmas conversas ao telefone.
Antes de ser mãe, eu dormia o quanto eu queria,
Nunca me preocupava com a hora de ir para a cama.
Eu não me esquecia de escovar os cabelos e os dentes


Antes de ser mãe,
eu limpava minha casa todo dia.
Eu não tropeçava em brinquedos e
nem pensava em canções de ninar.
Antes de ser mãe, eu não me preocupava:
Se minhas plantas eram venenosas ou não.
Imunizações e vacinas então,
eram coisas em que eu não pensava.


Antes de ser mãe,
ninguém vomitou e nem fez xixi em mim,
Nem me beliscou sem nenhum cuidado,
com dedinhos de unhas finas.
Antes de ser mãe,
eu tinha controle sobre a minha mente,
Meus pensamentos, meu corpo e meus sentimentos,
e dormia a noite toda.


Antes de ser mãe,eu nunca tive que
segurar uma criança chorando,
para que médicos pudessem fazer testes
ou aplicar injeções.
Eu nunca chorei olhando pequeninos
olhos que choravam.
Nunca fiquei gloriosamente feliz
com uma simples risadinha.
Nem fiquei sentada horas e horas
olhando um bebê dormindo.


Antes de ser mãe, eu nunca segurei uma criança,
só por não querer afastar meu corpo do dela.
Eu nunca senti meu coração se despedaçar,
quando não pude estancar uma dor.
Nunca imaginei que uma coisinha tão pequenina,
pudesse mudar tanto a minha vida e
que pudesse amar alguém tanto assim.
E não sabia que eu adoraria ser mãe.


Antes de ser mãe, eu não conhecia a sensação,
de ter meu coração fora do meu próprio corpo.
Não conhecia a felicidade de
alimentar um bebê faminto.
Não conhecia esse laço que existe
entre a mãe e a sua criança.
E não imaginava que algo tão pequenino,
pudesse fazer-me sentir tão importante.


Antes de ser mãe, eu nunca me levantei
à noite toda , cada 10 minutos, para me
certificar de que tudo estava bem.
Nunca pude imaginar o calor, a alegria, o amor,
a dor e a satisfação de ser uma mãe.
Eu não sabia que era capaz de ter
sentimentos tão fortes.
Por tudo e, apesar de tudo, obrigada Deus,
Por eu ser agora um alguém tão frágil
e tão forte ao mesmo tempo.
Obrigada meu Deus, por permitir-me ser Mãe!


Feliz Dia das Mães (atrasado !)

Desconheço o autor




quinta-feira, 5 de maio de 2011

Recordação




Eu bem sei
Que rodo em muitas esferas
E não sei
Por onde me levas, poesia.





Quando vou,
E não encontro ninguém,
Tenho medo do que sei:
Um filho de sua mãe
E seu pai,
Ou algum longínquo avó,
A quem um poeta sai.





Será também o Deus da infância
E a árvore sagrada
De frutos proibidos,
Na fragrância
Com que rasguei meus vestidos
E não retirei os ninhos...

Enchi de rosas a terra
E levo nas mãos espinhos.

Afonso Duarte

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Canção para uma valsa lenta



Minha vida não foi um romance...
Nunca tive até hoje um segredo.
Se me amas, não digas, que morro
De surpresa… de encanto… de medo...
Minha vida não foi um romance...
Minha vida passou por passar.
Se não amas, não finjas, que vivo
Esperando um amor para amar.
Minha vida não foi um romance...
Pobre vida… passou sem enredo...
Glória a ti que me enches a vida
De surpresa, de encanto, de medo!
Minha vida não foi um romance...
Ai de mim… Já se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso... de um gesto... um olhar...

Mario Quintana

domingo, 1 de maio de 2011

Retrato de pato



O pato ganhou sapato

Foi logo tirar retrato.

O macaco retratista

Era mesmo um grande artista.

Disse ao pato: "Não se mexa

Para depois não ter queixa".

Olhe pra cá direitinho:

Vai sair um passarinho.



O passarinho saiu,

Bicho assim nunca se viu.

Com três penas no topete

E no rabo apenas sete.

E como enfeite ele tinha

Um guizo em cada peninha.





Pousou no bico do pato:

- Eu também quero retrato!

No retrato saio só eu,

Pra mandar a minha vó!


A discussão não parava

E cada qual mais gritava.

Passa na rua um polícia.

"Uma briga? Que delícia!"

Entra como um pé de vento

Prende tudo num momento.


Mário Quintana