quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A massacrante felicidade dos outros



Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. Estamos todos no mesmo barco. Há no ar um certo queixume sem razões muito claras. Converso com mulheres que estão entre os 40 e 50 anos, todas com profissão, marido, filhos, saúde, e ainda assim elas trazem dentro delas um não-sei-o-quê perturbador, algo que as incomoda, mesmo estando tudo bem. De onde vem isso?


Anos atrás, a cantora Marina Lima compôs com o seu irmão, o poeta Antonio Cícero, uma música que dizia: "Eu espero/acontecimentos/ só que quando anoitece/é festa no outro apartamento". Passei minha adolescência com esta sensação: a de que algo muito animado estava acontecendo em algum lugar para o qual eu não tinha convite. É uma das características da juventude: considerar-se deslocado e impedido de ser feliz como os outros são - ou aparentam ser. Só que chega uma hora em que preciso deixar de ficar tão ligada na grama do vizinho.

As festas em outros apartamentos são fruto da nossa imaginação, que é infectada por falsos holofotes, falsos sorrisos e falsas notícias. Os notáveis alardeiam muito suas vitórias, mas falam pouco das suas angústias, revelam pouco suas aflições, não dão bandeira das suas fraquezas, então fica parecendo que todos estão comemorando grandes paixões e fortunas, quando na verdade a festa lá fora não está tão animada assim. Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. Estamos todos no mesmo barco, com motivos pra dançar pela sala e também motivos pra se refugiar no escuro, alternadamente. Só que os motivos pra se refugiar no escuro raramente são divulgados. Pra consumo externo, todos são belos, sexys, lúcidos, íntegros, ricos, sedutores. "Nunca conheci quem tivesse levado porrada/ todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo".


Martha Medeiros

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Gratidão



Eu morrerei
Mas tão à parte
De mim que nunca
O saberá

O alegre mundo
No qual subsisto
Em comunhão omnipresente.

eu morrerei
me desculpando diante dele
de ser diverso
(como me dói
só de pensar-me
ausente dele
em outro mundo!)

mas se puder morrer
tão rápido
que o mundo apenas
vendo o meu corpo

diante de si
quieto e ancorado
julgue que eu mesmo
esteja ali

então, espirito
ou o que for
me achegarei
dele sorrindo

e o beijarei
com tanto ardor
que, eternamente
lhe ficará

na face imensa,
o meu sinal
de criatura
agradecida.

Armindo Trevisan

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Eterna tarde


A tarde vai morrer, calma como uma santa,
num êxtase de luz infinito e divino.
Há nas luzes do céu qualquer coisa que canta,
com músicas de cor, a tristeza de um hino.

Tudo, em torno de nós, se esbate e se quebranta.
Em nossos corações, como um dobre de sino,
e esperança agoniza; e a alma, triste, levanta
suas trêmulas mãos para o altar do destino.

Não é somente a tarde, a eterna moribunda,
que vai morrer, e espalha esta mágoa profunda
no nosso olhar, nas nossas mãos, na nossa voz...

É uma outra tarde — que nunca há de ser aurora
como a do céu será amanhã — que morre agora,
triste, dentro de nós...


Alceu Wamosy

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O grande momento



A varanda era batida pelos ventos do mar
As árvores tinham flores que desciam para a
morte, com a lentidão das lágrimas.
Veleiros seguiam para crepúsculos com as
asas cansadas e brancas se despedindo,
O tempo fugia com uma doçura jamais de
novo experimentada
Mas o grande momento era

quando os meus olhos conseguiam
entrar pela noite fresca dos seus olhos...

Augusto Frederico Scmidt

domingo, 26 de setembro de 2010

Viver de poesia


Há tanto o que fazer com a poesia
que eu quase não dou conta das tarefas.
Trazê-la em estado de circulação
é mais que assumi-la sangue
de tanto me afundar no mangue
decorei o caminho do emergir
a volta do desmaio
do cair em si em mi
e mais todas as notas do percurso e escola.
Há tanto o que transar com a poesia
que tenho estado com ela sem nenhum projeto de anticoncepção
falá-la então é o VT desse sexo explícito de procriação
com direito a prazer e gozo em cada dobra de rima
Trazendo-a em estado vivo exerço a alquimia
de atropelar o efêmero
com o doce trator da perpetuação
agarrada aos motivos eternos
dos versos que eu escrevi
latejante exposição em estado de música e fotografia
é o que faço aqui
e aqui chego com meus cães:
sigo tudo de acordo com as ordens do Deus poema
que é o fiel domador.

Corro, sento, busco ossos
e inda faço gracinhas
elefante, golfinho, leão, macaquinho,
sopro, tambor, teclado, cavaquinho
vou bebendo vinho.
Há tanto o que fazer com a poesia
Há tanto o que namorar com a poesia
Há tanto o que compreender com a poesia
Há tanto o que viajar com a poesia
que eu com esse excesso de bagagem
passo na cara do vigia
de mãos vazias.
Mas tamanha é a magia
que toda a muamba que ninguém via
agora se esparrama no palco:
ela rainha, galinha
sambando no pedaço,
minha rainha poesia
e de salto alto.


Elisa Lucinda

Ai daqueles


Ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa

Paulo Leminski

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O chato


Se você quiser irritar um chato, finja que não o está escutando. O chato passa, então, para o terreno em que ele é mestre, o da repetição.

Continue fingindo que não está ouvindo o que o chato diz, o chato entra, então, em exasperação.

Se você for tenaz e se mantiver firme no fingimento, o chato se entrega e vai embora.

Há chato que diz: “Impressionante! É o terceiro surdo que encontro hoje. É muito azar. Mas vamos em busca do próximo”.

Encontro célebre entre mim e um chato, anteontem:

CHATO – Tu poderias me conceder 30 minutos do teu tempo, Sant’Ana?

EU – 30 minutos?

CHATO – É que eu tenho muitos assuntos para tratar contigo.

EU – O problema é a diversificação.

CHATO – Eu poderia abordar um só assunto, mas com profundidade.

EU – Não dá para reduzir a explanação do teu assunto para 15 minutos?

CHATO – Só se eu fizer um resumozinho.

O chato acabou me ocupando por 15 minutos, contados no relógio. Quando terminou o tempo, ele não tinha nem chegado ao âmago. Eu o interrompi e disse que não havia remédio, tinha de ir embora, estavam esgotados os 15 minutos.

E o chato desolado: “Mas não tem prorrogação?”.

O que melhor constrói a constância é a paciência. O que melhor constrói a ternura é a humildade. E o que melhor constrói a confiança é a experiência.

Já o que melhor constrói a coragem é a honradez. O que melhor constrói a inteligência é a clareza. E, por outra parte, o que melhor constrói a clareza é a simplicidade.

O que melhor constrói o ódio é a vingança. E o que melhor constrói a inconsciência é o esquecimento.

Já a amizade, o que melhor a constrói é a cumplicidade.

O que melhor constrói a desconfiança é a inconfidencialidade.

O que de mais doce e mais amargo ao mesmo tempo há na lembrança é a saudade.

O que ilumina a verdade é a lucidez.

O que se embute na perversidade é a mentira.

O que melhor constrói a adversidade é o erro na escolha.

O que melhor constrói a vibração é o entusiasmo.

O que melhor constrói a grandeza é a renúncia.

O que melhor constrói a pequeneza é a ardilosidade.

E o que melhor constrói a rudeza é o mau humor.

O que de mais característico há na chatice é a repetição.

O que melhor destrói a ansiedade é o cigarro.

Assim como o que mais destrói os alvéolos e os brônquios é o cigarro.

E de que adianta espantar a ansiedade se vão se destruindo os pulmões?

O que melhor constrói a malvadeza é a implacabilidade.

E, como se sabe, o que melhor constrói a eternidade é o amor.


Paulo Sant'Ana

Zero Hora 06/09/2010

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Não serve pra nada

Imagem: Silvia

De outubro a dezembro, Porto Alegre receberá a maior exposição de arte urbana do mundo, a Cow Parade. Dezenas de vacas de fibra de vidro, em tamanho natural, ficarão espalhadas pela cidade, todas decoradas por artistas plásticos, diretores de arte, designers e cartunistas. Um nonsense mais que bem-vindo, uma intervenção no nosso olhar acostumado. Ao passar por ruas, parques e viadutos, seremos surpreendidos por elas, vacas enormes, coloridas, profanas, insólitas. Para quê? Para nada de especial, apenas para espantar o tédio, inspirar loucuras, lembrar que as coisas não precisam ser sempre iguais.

Um descrente não se convenceria: “Se não serve para nada, então qual o sentido?”.

Convocarei a poesia para tentar explicar.

Ela, a poesia, serve para a mesma coisa que serve uma vaca no meio da calçada de uma agitada metrópole. Para alterar o curso do nosso andar, para interromper um hábito, para provocar um estranhamento, para nos fazer pensar, para nos resgatar do inferno que é viver todo santo dia sem nenhum assombro, sem nenhum encantamento.

Ainda ouço o sujeito resmungando: “Ou seja, também não serve pra nada”.

Hoje em dia, quando se quer elogiar alguma coisa, costuma-se dizer: “Fulano é tudo”, “O filme é tudo”. Quanta consistência, quanta importância. Tudo!

Diante da soberania do tudo, defendo o nada e sua valiosa despretensão. Flores não servem para nada, mas não abro mão de tê-las por perto, me fazendo companhia dentro de casa. Velas não servem para nada (quando se tem energia elétrica), mas eu as acendo mesmo assim, para que atraiam bons espíritos. Para que serve viajar, havendo cartões-postais? Os cartões ao menos podem ser grudados na parede, mas lembranças, se faz o que com elas? Para que serve comer um prato caro e elaborado se, horas mais tarde, ele terá o mesmo fim que um reles feijão com arroz? Para que serve a arte? Para que serve a paixão? Para que serve mergulhar, escalar uma montanha, saltar de paraquedas?

Contaminados pela síndrome da utilidade, estamos perdendo o hábito de reverenciar a nobreza daquilo que serve apenas para ser contemplado, daquilo que desperta um prazer sensitivo e nada mais.

O tudo (tecnologia, religião, política, família) nos incute metas, ritos, obrigações, distraindo-nos assim da ideia da morte. Mas é o nada que, em sua extrema pureza, dá o verdadeiro sentido à vida.

Martha Medeiros
Zero Hora 22/09/2010

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Bordando entrelinhas



Ornamento figuras
na barra dos tecidos
e prefiro as impuras
de irônicas agulhas
e não acerto a mão
nas fofuras de algodão

Exerço sórdida trama
em ponteio da seda
com um toque suave
do tipo que clama
por mais delicadeza

Encubro as agruras
com mimos de lã macia
como verso em poesia
em laçadas de beleza
na urdidura das linhas

E bordo as entrelinhas
com a frieza do metal
meu traçado diagonal
entrelaça as incertezas
as suas e as minhas

Uso ponto rococó
para matar o caseado
arremato com um nó
o motivo que traduz
tudo o que foi forjado
em ponto cruz.

Wasil Sacharuk

Biografia

Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo.
Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai!
Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade.

Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não astava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu...
Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz.
Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?
Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Érico Veríssimo - que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.

Mário Quintana

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Talvez


Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,

E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...

E por amor
Serei... Serás...Seremos...


Pablo Neruda

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Acima de tudo


Da gota d'água de um carinho agreste
Geram-se os oceanos da Bondade.
O coração que é livre e bom reveste
Tudo d'encanto e simples majestade.

Ascender para a Luz é ser celeste,
Novos astros sentir na imensidade
Da alma e ficar nessa inconsútil veste
Da divina e serena claridade.

O que é consolador e o que é supremo
Cada alma encontra no caminho extremo,
Quando atinge às estrelas da pureza.

É apenas trazer o Ser liberto
De tudo e transformar cada deserto
Num sonho virginal da Natureza!

Cruz e Sousa

20 de setembro


Orgulho de ser gaúcho!


Hino Rio-Grandense
Composição: Joaquim José de Mendanha

Como a aurora precursora
Do farol da divindade,
Foi o Vinte de Setembro
O precursor da liberdade.

Mostremos valor, constância,
Nesta ímpia e injusta guerra;
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda a terra.
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda a terra

Mas não basta, para ser livre,
Ser forte, aguerrido e bravo;
Povo que não tem virtude,
Acaba por ser escravo.

Mostremos valor, constância,
Nesta ímpia e injusta guerra;
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda a terra.
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda a terra

domingo, 19 de setembro de 2010

Eu nasci além dos mares


Eu nasci além dos mares:
Os meus lares,
Meus amores ficam lá!
— Onde canta nos retiros
Seus suspiros,
Suspiros o sabiá!

Oh que céu, que terra aquela,
Rica e bela
Como o céu de claro anil!
Que seiva, que luz, que galas,
Não exalas
Não exalas, meu Brasil!

Oh! que saudades tamanhas
Das montanhas,
Daqueles campos natais!
Daquele céu de safira
Que se mira,
Que se mira nos cristais!

Não amo a terra do exílio,
Sou bom filho,
Quero a pátria, o meu país,
Quero a terra das mangueiras
E as palmeiras,
E as palmeiras tão gentis!

Como a ave dos palmares
Pelos ares
Fugindo do caçador;
Eu vivo longe do ninho,
Sem carinho;
Sem carinho e sem amor!

Debalde eu olho e procuro...
Tudo escuro
Só vejo em roda de mim!
Falta a luz do lar paterno
Doce e terno,
Doce e terno para mim.

Distante do solo amado
— Desterrado —
A vida não é feliz.
Nessa eterna primavera
Quem me dera,
Quem me dera o meu país!


Casimiro de Abreu

sábado, 18 de setembro de 2010

Ciclo


Manhã. Sangue em delírio, verde gomo,
Promessa ardente, berço e liminar:
A árvore pulsa, no primeiro assomo
Da vida, inchando a seiva ao sol... Sonhar!


Dia. A flor - o noivado e o beijo, como
Em perfumes um tálamo e um altar:
A árvore abre-se em riso, espera o pomo,
E canta à voz dos pássaros... Amar!

Tarde. Messe e esplendor, glória e tributo;
A árvore maternal levanta o fruto,
A hóstia da idéia em perfeição... Pensar!

Noite. Oh! Saudade!... A dolorosa rama
Da árvore aflita pelo chão derrama
As folhas, como lágrimas... Lembrar!

Olavo Bilac

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

A Salamanca do Jarau

No tempo dos padres jesuítas, existia um moço sacristão no Povo de Santo Tomé, na Argentina, do outro lado do rio Uruguai. Ele morava numa cela de pedra nos fundos da própria igreja, na praça principal da aldeia.
Ora, num verão mui forte, com um sol de rachar, ele não conseguiu dormir a sesta. Vai então, levantou-se, assoleado e foi até a beira da lagoa refrescar-se. Levava consigo uma guampa, que usava como copo.


Coisa estranha: a lagoa toda fervia e largava um vapor sufocante e qual não é a surpresa do sacristão ao ver sair d'água a própria Teiniaguá, na forma de uma lagartixa com a cabeça de fogo, colorada como um carbúnculo. Ele, homem religioso, sabia que a Teiniaguá - os padres diziam isso!- tinha partes com o Diabo Vermelho, o Anhangá-Pitã, que tentava os homens e arrastava todos para o inferno. Mas sabia também que a Teiniaguá era mulher, uma princesa moura encantada jamais tocada por homem.
Aquele pelo qual se apaixonasse seria feliz para sempre.

Assim, num gesto rápido, aprisionou a Teiniagá na guampa e voltou correndo para a igreja, sem se importar com o calor. Passou o dia inteiro metido na cela, inquieto, louco que chegasse a noite.

Quando as sombras finalmente desceram sobre a aldeia, ele não se sofreu: destampou a guampa para ver a Teiniaguá. Aí, o milagre: a Teiniaguá se transformou na princesa moura, que sorriu para ele e pediu vinho, com os lábios vermelhos. Ora, vinho só o da Santa Missa. Louco de amor, ele não pensou duas vezes: roubou o vinho sagrado e assim, bebendo e amando, eles passaram a noite.
No outro dia, o sacristão não prestava para nada. Mas, quando chegou a noite, tudo se repetiu. E assim foi até que os padres finalmente desconfiaram e numa madrugada invadiram a cela do sacristão. A princesa moura transformou-se em Teiniaguá e fugiu para as barrancas do rio Uruguai, mas o moço, embriagado pelo vinho e de amor foi preso e acorrentado.

Como o crime era horrível - contra Deus e a Igreja! - foi condenado a morrer no garrote vil, na praça, diante da igreja que ele tinha profanado.
No dia da execução, todo o Povo se reuniu diante da igreja de São Tomé. Então, lá das barrancas do rio Uruguai a Teiniaguá sentiu que seu amado corria perigo. Aí, com todo o poder de sua magia, começou a procurar o sacristão abrindo rombos na terra, um valos enormes, rasgando tudo. Por um desses valos ela finalmente chegou à igreja bem na hora em que o carrasco ia garrotear o sacristão. O que se viu foi um estouro muito grande, nessa hora, parecia que o mundo inteiro vinha abaixo, houve fogo, fumaça e enxofre e tudo afundou e tudo desapareceu de vista. E quando as coisas clarearam a Teiniaguá tinha libertado o sacristão e voltado com ele para as barrancas do rio Uruguai.

Vai daí, atravessou o rio para o lado de cá e ficou uns três dias em São Francisco de Borja, procurando um lugar afastado onde os dois apaixonados pudessem viver em paz. Assim, foram parar no Cerro do Jarau, no Quaraim, onde descobriram uma caverna muito funda e comprida.

Em Quaraí, RS, o CErro do Jarau

E lá foram morar, os dois.
Essa caverna, no alto do Cerro, ficou encantada. Virou Salamanca, que quer dizer "gruta mágica", a Salamanca do Jarau. Quem tivesse coragem de entrar lá, passasse 7 Provas e conseguisse sair, ficava com o corpo fechado e com sorte no amor e no dinheiro para o resto da vida.


Na Salamanca do Jarau, a Teiniaguá e o sacristão se tornaram os pais dos primeiros gaúchos do Rio Grande do Sul. Ah, ali vive também a Mãe do Ouro, na forma de uma enorme bola de fogo. Às vezes, nas tardes ameaçando chuva, dá um grande estouro numa das cabeças do Cerro e pula uma elevação para outra.

Simões Lopes Neto

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Leitura

Conforme uma pesquisa sobre leitura, veja quem mais influencia no hábito de ler.


Mãe (ou responsável mulher) 49%


Professora 33%


Pai (ou responsável homem) 30%


Outro parente 14%


Amigo 8%


Padre, pastor ou líder religioso 5%


Colega ou superior no trabalho 2%


Outros 3%


Ninguém 14%


Não sabe ou não informou 1%


Portanto, pais e professores, é muito grande e importante oo seus papéis .

Esparadrapo


Há palavras que parecem exatamente o que querem dizer. “Esparadrapo”, por exemplo. Quem quebrou a cara fica mesmo com cara de esparadrapo. No entanto, há outras, aliás de nobre sentido, que parecem estar insinuando outra coisa. Por exemplo: “Incunábulo”


Mario Quintana.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Tatuagens


Há mais ou menos uma semana que minha filha mais velha, de 17 anos, vinha falando que estava a fim de fazer uma tatuagem. Eu não tinha nada contra, até já pensei em fazer também, mas mãe é mãe, e dei a ela uns toques: não faz nada muito grande pra não se arrepender depois, pesquisa os melhores tatuadores, te informa e, principalmente, pensa bem, porque é algo que vai ficar no teu corpo pra sempre - e "pra sempre" é tempo que não acaba mais. Ela já tinha na cabeça o que queria (uma clave de sol, porque é louca por música) e o local (no pulso direito). Hoje ela decidiu e fez.



"Doeu"? Foi a primeira pergunta que fiz quando ela chegou em casa. "Demais!" foi a resposta. Ela chegou a ficar meio tonta, mas segurou bem a onda. Segundo ela, quem já teve pedra no rim agüenta qualquer dor (eu nunca tive, mas ela já). Bom, eu achei o maior barato a tatuagem dela. Ficou um pouquinho maior do que eu esperava, mas está classuda. Fiquei orgulhosa da determinação da minha filha.
Tatuagem já foi algo considerado meio marginal, hoje é raro encontrar alguém que não tenha. Tenho uma amiga que é escritora e mora em São Paulo, e a maluca tatuou as costas dela de cima a baixo com frases que ela considera marcantes. Uma doida. Mas uma doida com personalidade. Tatuagem é uma marca pessoal, uma maneira de nos diferenciarmos nesse mundo onde todos se parecem.
O que eu tatuaria em mim? Certamente, nenhum nome próprio. Nenhuma frase que pudesse ter importância hoje, mas sabe-se lá amanhã. Um namorado meu uma vez tatuou a letra do meu nome (sou um triplo M - Martha Mattos de Medeiros), mas eu fingi que não o havia levado a sério, já que o nome dele também começa com M... Mas ele foi bacana e, além do M, tatuou um livro aberto sob a letra, pra me identificar. Foi uma homenagem linda que ele me fez. Nunca vou esquecer dele nem disso.
Mas voltando a pergunta anterior: o que eu tatuaria em mim? Talvez um avião, pelo meu amor às viagens. Talvez um livro, pelo meu amor à literatura. Talvez um sol, meu astro regente. Talvez uma estrela, já que tenho uma que nunca deixa de brilhar. Talvez a letra M, que abrange tantas coisas femininas: mulher, menina, mãe, musa, moça, modelo, mistério, milagre, mais, menos, muito! M é a letra da maturidade.
Esquece. Eu tatuaria um sol.
Perguntei ainda agora pra minha filha: por que a clave?
"Porque o amor pela música é pra sempre".
Touché!



Martha Medeiros

Catar feijão



Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.


Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.


Ora, nesse catar feijão, entra um risco:
o de entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.

Certo não, quanto ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.


João Cabral Melo Neto

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Não sei quantas almas tenho


Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.


De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.


Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.


Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : “Fui eu ?”
Deus sabe, porque o escreveu.


Fernando Pessoa

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A hora certa


Quando não se puder
mais olhar uma flor,
quando não se puder
mais amar uma mulher,
quando o mundo for
só aparência de ser
e não permitir alegria,
é a hora certa de plantar,
é a hora certa de cantar,
é a hora certa de amar
é a hora certa de ver,
é a hora certa de viver,
é a hora certa de colher,
a manhã sempre vem,
o amor pode voltar
pra te dizer que a vida
vale a pena ser vivida.

É a hora certa de plantar,
é a hora certa de cantar,
é a hora certa de amar,
é a hora certa de ver,
é a hora certa de viver,
é a hora certa de colher.

José Eduardo Degrazia

sábado, 11 de setembro de 2010

Não se faz ...


Não se faz omelete sem ovos, não se faz quindim sem coco, não se faz mocotó sem vinho, nem se faz coluna sem entusiasmo.

Não se faz panqueca sem guisado moído, guisado graúdo é incompatível com a panqueca, não se faz arroz de leite sem canela, não se faz polenta sem milho, não se faz churrasco sem calor. São, por sinal, necessários dois calores para fazer churrasco: o calor das brasas e o calor humano.

Não se faz justiça sem clemência, não se faz administração sem planejamento, não se deve fazer filhos sem amor, não se faz investimento sem crédito, não se faz gemada sem açúcar, não se sente inveja sem admiração, não se faz espaguete sem água quente nem se faz doce de coco que não seja desfiado.
Não se deve fazer texto sem conteúdo, não se faz birra sem motivo, não se faz pandorga sem cordão nem se faz compota sem calda.

Não se pratica crime sem intenção, não se faz presídio sem associação do público com o privado (não é, doutor Tarso Genro?), não se faz jogo de carta sem valer dinheiro, ainda que seja pouco, não se faz Mega Sena sem sonho.

Não se faz, pelo menos não se deve fazer, saia sem decote, não se faz fumódromo sem fumantes, não se fazem drogas sem usuários.

Não se faz remédio sem prevenção, nem polícia sem prevenção, não se faz administração pública sem sonegação, não se criam impostos sem sonegação.
Não se faz música popular sem letra, não se faz suor sem catinga, não se faz SUS sem médicos, não tem sentido existirem doentes e não existirem leitos nos hospitais.

Não se faz demanda sem fila, não se faz banco sem dinheiro, tampouco se faz banco sem assalto (ao banco ou aos clientes).

Não se faz polícia sem cassetete, dizia-se e hoje não se diz mais, depois das aventuras do Bruno, que não se faz crime sem cadáver.

Não se deve fazer provimento de cargos sem concurso, não se faz dívida sem previsão nem se faz lombinho de porco sem pingar gotas de limão.

Não se faz merengue mole sem uma lasca de casca de laranja, não se fazem doces de Pelotas sem ovos, não se faz denúncia sem comprovação.

Não se faz sexo sem camisinha e, do jeito que a coisa anda, deve-se usar camisinha até quando se faz sexo sozinho.

Não se faz agudo sem tenor nem grave sem contralto, não se faz presidente da República sem voto, os feitos com as armas eram ilegítimos.
Não se faz samba sem pandeiro nem tango sem bandoneon, apesar de que no tempo de Gardel não existia bandoneon, era só na base de guitarras.

Não se faz bíblia sem profetas, não se faz calvário sem cruz nem se faz libelo sem provas.

E a partir de hoje fica definitivamente provado que é possível fazer uma ótima coluna sem assunto.

Paulo Santana
Zero Hora 12/09/2010

Qual independência ?


O brado de dom Pedro I no 7 de setembro sintetiza um desafio que também aparece em lemas, em canções, em hinos, em poemas: ou a liberdade ou a luta, luta encarniçada, mortal. É algo universal: se vocês entrarem no Google e digitarem a (aproximada) versão em inglês desta expressão, “freedom or death”, aparecerão nada menos de 68 milhões de referências, que incluem o título de um livro do grego Nikos Kazantzakis (autor de Zorba, o Grego), o nome de uma banda, e a inscrição de uma camiseta apreendida no aeroporto de Londres sob a alegação de que incitava ao terrorismo. “Independência ou morte” expressa o indignado desejo coletivo de um país, de um grupo humano; no caso de dom Pedro havia também o drama pessoal, desencadeado pela carta recebida junto ao Ipiranga, em que o pai lhe ordena que retorne a Portugal. O príncipe era muito jovem e tinha emoções à flor da pele – suas paixões eram célebres. Certamente, e quem sabe movido por um sentimento edipiano, tomou a determinação paterna como medida opressora, tirânica. E, aí, sacou a espada e soltou seu brado, aclamado entusiasticamente pela comitiva; o povo, como de costume, não estava presente.

Surge a pergunta: o Brasil estava, de fato, independente? Aparentemente, sim: os laços com a Coroa portuguesa haviam sido cortados (ironicamente o imperador, como Pedro IV, assumiria anos mais tarde o trono de Portugal). Mas o domínio político luso havia sido apenas substituído pelo mais sutil domínio britânico, que se exercia no plano econômico; os produtos ingleses vendidos no Brasil custavam muito caro; declinou a produção de artigos de exportação, cacau, algodão, café; a dívida externa cresceu e também a inflação. A oposição a dom Pedro aumentava e ele teve de deixar o trono.

Isto nos faz pensar que há duas formas de proclamar a independência. Uma é a forma súbita, o gesto ousado, destemido: dê-me a independência ou lutarei por ela até a morte, se for preciso. A cena do Ipiranga tem correspondência em muitos lugares: na casa, quando o filho diz aos pais que não quer mais receber ordens; no emprego, quando o empregado diz desaforos para o patrão.

O gesto é coisa de minutos: o tempo de ler a carta, de puxar a espada de soltar o brado. A vida, não. A vida é lenta, e feita mais de rotinas do que de rupturas. E é ao longo da vida que temos de, aos poucos, nos tornar independentes. Isso é feito sem arroubos, sem gritarias; depende basicamente de um processo de autoconhecimento, pelo qual identificamos, em nós mesmos, aqueles mecanismos que nos tornam dependentes de outros, dos pais, dos cônjuges, dos chefes. A independência ocorre num 7 de setembro, mas também num 8, num 9, num 10, em muitos meses, em muitos anos. E ela surge em silêncio, às vezes acompanhada de lágrimas, às vezes de sorrisos. A independência tarda. Porém, ao fim e ao cabo, é sempre gloriosa .


Moacyr Scliar
ZH 07/09/2010

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Bolhas


Olha a bolha d’água no galho!
Olha o orvalho!

Olha a bolha de vinho na rolha!
Olha a bolha!


Olha a bolha na mão que trabalha
Olha a bolha de sabão na ponta da palha
brilha, espelha e se espalha
Olha a bolha!


Olha a olha que molha a mão do menino:
A bolha de chuva na calha!

Cecília Meireles

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Boa noite


A zebra quis
ir passear
mas a infeliz
foi para a cama

— teve que se deitar
porque estava de pijama.

Sidónio Muralha

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Sensações


"Sensacões, como são difíceis de serem expressas...


O coração bate tresloucadamente, as mãos suam,nervos a flor da pele e aquela incerteza latente:ligar ou não ligar? E se ele não lembrar de mim? E se simplesmente me ignorar??? O que fazer...


Coração retumbando dentro do peito, ansiedade pura, pulsação como se tivesse acabado de correr uma maratona... E então ela decide: vou ligar e seja o que Deus quiser!


Levanta de sua mesa de trabalho, atrolhada de processos complicadíssimos que destrincha com a maior facilidade e o medo se apodera dela...Não vou desistir, hoje eu vou ligar... Seus dedos tremulam ao digitar os números, código da operadora,2 números, código da área,+ 2, número do telefone,+ 08 , são doze intermináveis números que ela digita durante os quais ela simplesmente não raciocina para não desistir.


Números discados, telefone chamando, toca uma, duas, três, ela já até está querendo desligar pensando “viu, ele não atendeu, a culpa não foi minha”! Quando ouve um alô do outro lado, daquela voz tão conhecida, jamais esquecida, apesar do tempo passado, ela tira uma forca que não sabia que possuía e comeca a falar...Primeiro coisas triviais, “ como tu estás, e o trabalho, saúde?” e todo aquele papo educado que aprendemos a ter, como dizem os franceses “come il faut”... Perguntas que vão , respostas que vêm, questões respondidas e o tempo passando e ela pensando: “ eu não vou conseguir...” Mas ela é uma mulher determinada, que aprendeu a lidar melhor com suas emoções e que acha extremamente injusto esconder seus sentimentos dos outros e de si própria...
Então menciona: “isto não têm nada a ver com você , eu é que preciso te dizer isso...”respira fundo e solta o verbo, com uma coragem que vem das entranhas: “tu não sabes como eu te amei naquela época...”, ela nunca havia dito isso com todas as palavras: EU TE AMO! Apesar das atitudes indicaram, os olhos falarem,mas a boca era reprimida...Não conseguia dizer durante todos os momentos apaixonados e maravilhosas vividos, essas palavras mágicas... ela ainda era uma menina-mulher, confusa, apaixonada... e achava que não dizendo isso, deixava de entregar o que já havia sido entregue a muito tempo: sua alma, seu coração e seu corpo... Quanta bobagem... só o tempo e a experiência a deixaram ver isso... Vitória ! Ela disse! Conseguiu! Está em paz com sua consciência. Disse a quem nunca havia dito que o amava, apesar de um atraso de dez anos, mas isso é detalhe! Ela deixou de dizer, ele deixou de ouvir, será que mudaria algo??? Agora isso não interessa...Ele pareceu um pouco perturbado e diz que ficou emocionado...Retribui com o velho jargão “eu também gostei muito de ti”...


Ela não acredita que cumpriu a missão que tinha estabelecido para si mesma, então se despede: “um beijo para ti” e desliga.

Volta para sua sala, senta em sua mesa, em frente ao seu computador, como se nada tivesse acontecido! Tudo parece igual, seus colegas sérios trabalhando, os processos se avolumando e ela tenta se concentrar, seus olhos enchem de lágrimas, ela havia vencido mais uma batalha! Ela era uma mulher de verdade que não esconde o que sentiu, sente e sentirá! Cresceu amadureceu!
Se parabeniza mentalmente e pensa: “a liberdade realmente é azul!”"


Martha Medeiros

domingo, 5 de setembro de 2010

Nada fica


Um sábio me dizia: esta existência,
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero inventaria a morte.
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo. E vibra e cresce
e se desdobra e estala num segundo.
Homem, eis o que somos neste mundo.

Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: ó mocidade,
és relâmpago ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa;
esta vida não vale grande coisa.
Uma mulher que chora, um berço a um canto;
o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.
Depois o mundo, a luta que intimida,
quadro círios acesos : eis a vida

Isto me disse o monge e eu continuei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um pobre me dizia: para o pobre
a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não creio nesta fantasia.
Deus me deu fome e sede a cada dia
mas nunca me deu pão, nem me deu água.
Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta vida: um pão envenenado.

Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo.
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
No telhado, um penacho de fumaça.
Cortinas muito brancas na vidraça
Um canário que canta na gaiola.
Que linda a vida lá por dentro rola!

Pela primeira vez eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver.

Guilherme de Almeida

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Amigos

Gosto muito desta história que conto agora.

Um amigo disse para o outro: “Se eu não estiver em casa e bater na porta um grande amigo meu, minha mulher não está autorizada a fazê-lo entrar”.

O outro respondeu: “Estás redondamente enganado. Se não estiveres em casa e bater lá um grande amigo teu, deves autorizar a que tua mulher o deixe entrar. Pois, se ele não puder entrar, então é porque não tens em casa uma verdadeira mulher e não te bateu à porta um verdadeiro amigo”.


Paulo Sant'Ana
Zero Hora 2/09/2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Era digital


Como estamos na ' Era Digital ', foi necessário rever os velhos ditados existentes e adaptá-los a nova realidade.

1. A pressa é inimiga da conexão.

2. Amigos, amigos, senhas à parte.

3. A arquivo dado não se olha o formato.

4. Diga-me que chat freqüentas e te direi quem és.

5. Para bom provedor uma senha basta.

6. Não adianta chorar sobre arquivo deletado.

7. Em briga de namorados virtuais não se mete o mouse.

8. Hacker que ladra, não morde.

9. Mais vale um arquivo no HD do que dois baixando.

10. Mouse sujo se limpa em casa.

11. Melhor prevenir do que formatar.

12. Quando um não quer, dois não teclam.

13. Quem clica seus bons ares multiplica.

14. Quem com vírus infecta, com vírus será infectado.

15. Quem envia o que quer, recebe o que não quer... (melhor de todas!!!)

16. Quem não tem banda larga, caça com modem.

17. Quem semeia e-mails, colhe spams.

18. Quem tem dedo vai a Roma.com

19. Vão-se os arquivos, ficam os back-ups.

20. Diga-me que computador tens e direi quem és.

21. Uma impressora disse para outra: Essa folha é sua ou é impressão minha ?

22. Aluno de informática não cola, faz backup.

23. Na informática nada se perde nada se cria. Tudo se copia... E depois se cola.
Desconheço o autor

O luto de cada um


Não sei se você também, às vezes, percebe isso: de repente, um assunto qualquer, que não costuma ser discutido, invade a mídia, coincidentemente ou não. Pois aconteceu de novo. Na semana passada, li umas três matérias diferentes sobre o tempo que se leva pra "curar" um amor terminado. E em todas elas o diagnóstico era praticamente igual: de três a seis meses é o tempo considerado normal. Se depois de um ano de rompimento o sofrimento persistir, passa a ser patologia.

Se eu entendi bem, passados 180 dias de ausência daquele que a gente ama, o natural é que a gente comece a se interessar por outras pessoas e deixe de sentir dor. Em 180 dias, no máximo, você tem que chorar toda a sua perda, processar todo o seu pesar, racionalizar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Seis meses. É o prazo limite, se você tiver uma cabeça saudável.

Li, compreendi, achei sensato e confortante, mas não serve pra mim. Sou da raça das patológicas.

Nas poucas vezes em que vivi um trauma de amor, eu extrapolei o prazo dado pelas matérias de revista. Nunca me enfurnei em casa, nunca neguei o chamado da vida, fui à luta e segui vivendo, mas a dor era companheira de jornada, eu curtia um luto branco, que não aparecia para os outros, mas era sagrado pra mim e durava o tempo que eu permitia.

Talvez fosse mais honesto dizer que até hoje sofro todas as minhas perdas. Isso parece doença porque a maioria das pessoas acha que sofrer significa encharcar travesseiros e fechar-se pra vida. Sofrer e ser feliz não precisam ser incompatíveis. No meu caso, não é. Sou uma mulher privilegiada, trago as emoções e a cabeça em ordem, mas não esqueço de nada nem de ninguém. Eu me lembro de tudo. Eu valorizo tudo. Eu reverencio todos os meus grandes momentos partilhados. Eu os reconheço como legítimos e insubstituíveis, e os homenageio com minha saudade. E ai de quem me disser que isso tem data pra acabar.

Martha Medeiros

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Inconfesso desejo



Queria ter coragem
Para falar deste segredo
Queria poder declarar ao mundo
Este amor
Não me falta vontade
Não me falta desejo
Você é minha vontade
Meu maior desejo
Queria poder gritar
Esta loucura saudável
Que é estar em teus braços
Perdido pelos teus beijos
Sentindo-me louco de desejo
Queria recitar versos
Cantar aos quatros ventos
As palavras que brotam
Você é a inspiração
Minha motivação
Queria falar dos sonhos
Dizer os meus secretos desejos
Que é largar tudo
Para viver com você
Este inconfesso desejo


Carlos Drummond de Andrade