quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

NÃO COMEREI DA ALFACE A VERDE PÉTALA




Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem mais aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro; deem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei, feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.

Vinicius de Moraes

sábado, 25 de janeiro de 2014

Pampianas: A algariada tagarelice dos pintos



O dia empurrava a carreta das sombras, e os primeiros raios de luz se embrenhavam nos ramos do arvoredo. E lá estávamos, à porta das casas, como acontece um dia sim e outro também, eu e a Mozinha, dileta esposa, deitando mate nos queixos.
De minha parte, um dizer de coisas curtas. Da parte dela, assunteios mais nutridos e prolongados. Lá pelas tantas, passa aquela procissão festiva da galinha com sua ninhada de pintinhos.
Altivo, tomando posse de um galho da figueira, lá estava o Lorito, meu papagaio de estimação. Volta e meia me estendia o seu atencioso “bom dia Dr. Laurindo”, quase sempre emendado com a solicitação de um mate, posto que tornara-se arregimentado às tradições gaudérias.
Lembrei aquele humilde santo que alardeava aos quatro ventos “os animais são nossos irmãos menores”.
Concordo em partes, dos bichos de penas sou irmão dos passarinhos. De escamas, dos peixes. De guampas, dos touros. Agora, não me venham conferir irmandade ou parentesco com jararacas e caranguejeiras que eu estabeleço minha recusa em atropeladas discordâncias.
Logo larguei a escaramuçar meu pensamento:“O Lorito fala pelas tripas porque tem a língua pontuda. Na ninhada, os pintinhos todos de língua redonda redondinha pelas voltas e beiradas”.
– Mozinha, traz a tua tesourinha de bordados que vou fazer um experimento!
E fui formatando a língua dos bichinhos nas linhas das circunferências com precisão e cuidado, sem esquecer do algodão e mercúrio para espantar padecimentos. Mas não é que num repente a pintalhada se reuniu e saiu alvoroçada, num corre-corre faceiro, rindo e gritando: “Obrigado Dr. Laurindo!”.
Um dia desses, a Mozinha com seu sábio pensar me lembrou que a invencionice é tudo.
– Não fosse um tal de Édson, a gente teria de assistir televisão à luz de velas.
Para mim, as duas grandes invencionices da inteligência humana são o avião e o descascador de espiga de milho. Bueno, a conversa tá boa, mas chegou a hora de ganhar campo que hay que recontar a gadaria.
Luiz  Coronel
Zero Hora 25/01/2014

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A partida


Quero ir-me embora pra estrela
Que vi luzindo no céu
Na várzea do setestrelo.
Sairei de casa à tarde
Na hora crepuscular
Em minha rua deserta
Nem uma janela aberta
Ninguém para me espiar
De vivo verei apenas
Duas mulheres serenas
Me acenando devagar.
Será meu corpo sozinho
Que há de me acompanhar
Que a alma estará vagando
Entre os amigos, num bar.
Ninguém ficará chorando
Que mãe já não terei mais
E a mulher que outrora tinha
Mais que ser minha mulher
É mãe de uma filha minha.
Irei embora sozinho
Sem angústia nem pesar
Antes contente da vida
Que não pedi, tão sofrida
Mas não perdi por ganhar.
Verei a cidade morta
Ir ficando para trás
E em frente se abrirem campos
Em flores e pirilampos
Como a miragem de tantos
Que tremeluzem no alto.
Num ponto qualquer da treva
Um vento me envolverá
Sentirei a voz molhada
Da noite que vem do mar
Chegar-me-ão falas tristes
Como a querer me entristar
Mas não serei mais lembrança
Nada me surpreenderá:
Passarei lúcido e frio
Compreensivo e singular
Como um cadáver num rio
E quando, de algum lugar
Chegar-me o apelo vazio
De uma mulher a chorar
Só então me voltarei
Mas nem adeus lhe darei
No oco raio estelar
Libertado subirei.

Vinicius de Moraes