domingo, 29 de abril de 2012

Antepassado




Só te conheço de retrato,

não te conheço de verdade,

mas teu sangue bole em meu sangue

e sem saber te vivo em mim

e sem saber vou copiando

tuas imprevistas maneiras,

mais do que isso: teu fremente

modo de ser, enclausurado

entre ferros de conveniência

ou aranhóis de burguesia,

vou descobrindo o que me deste

sem saber que o davas, na líquida

transmissão de taras e dons,

vou te compreendendo, somente

de esmerilar em teu retrato

o que a pacatez de um retrato

ou o seu vago negativo,

nele implícito e reticente,

filtra de um homem; sua face

oculta de si mesmo; impulso

primitivo; paixão insone

e mais trevosas intenções

que jamais assumiram ato

nem mesmo sombra de palavra,

mas ficaram dentro de ti

cozinhadas em lenha surda.

Acabei descobrindo tudo

que teus papéis não confessaram

nem a memória de família

transmitiu como fato histórico

e agora te conheço mais

do que a mim próprio me conheço,

pois sou teu vaso e transcendência,

teu duende mal encarnado.

Refaço os gestos que o retrato

não pode ter, aqueles gestos

que ficaram em ti à espera

de tardia repetição,

e tão meus eles se tornaram,

tão aderentes ao meu ser

que suponho tu os copiaste

de mim antes que eu os fizesse,

e furtando-me a iniciativa,

meu ladrão, roubaste-me o espírito.

Carlos Drummond de Andrade



sábado, 21 de abril de 2012

Testamento

À prostituta mais nova

Do bairro mais velho e escuro,


Deixo os meus brincos, lavrados


Em cristal, límpido e puro...


                       E àquela virgem esquecida


                      Rapariga sem ternura,

                     Sonhando algures uma lenda,


                     Deixo o meu vestido branco,


                    O meu vestido de noiva,


                    Todo tecido de renda...


Este meu rosário antigo


Ofereço-o àquele amigo

Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus


Das contas de outro sofrer,


São para os homens humildes,


Que nunca souberam ler.


                                Quanto aos meus poemas loucos,


                                Esses, que são de dor


                               Sincera e desordenada...


                               Esses, que são de esperança,


                               Desesperada mas firme,


                              Deixo-os a ti, meu amor...

                             Para que, na paz da hora,

                             Em que a minha alma venha


                            Beijar de longe os teus olhos,

                            Vás por essa noite fora...


                           Com passos feitos de lua,


                            Oferecê-los às crianças


                            Que encontrares em cada rua...




Alda Lara

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Quem é quem

Posso dizer: estou pronto


para me dar ao que vier.

Posso errar, mas não por medo


de me ser no que fizer.


Quem me pode responder


que sabe ser, sendo inteiro


fiel e simples, sendo a tudo


que faz e não quer fazer?




Thiago de Mello

terça-feira, 17 de abril de 2012

Para os que virão


Como sei pouco, e sou pouco,


faço o pouco que me cabe


me dando inteiro.


Sabendo que não vou ver


o homem que quero ser.


                                                Já sofri o suficiente


                                                para não enganar a ninguém:


                                               principalmente aos que sofrem


                                              na própria vida, a garra


                                             da opressão, e nem sabem.



Não tenho o sol escondido


no meu bolso de palavras.

Sou simplesmente um homem


para quem já a primeira


e desolada pessoa


do singular - foi deixando,


devagar, sofridamente


de ser, para transformar-se


- muito mais sofridamente -


na primeira e profunda pessoa


do plural.


                                                 Não importa que doa: é tempo


                                                de avançar de mão dada


                                               com quem vai no mesmo rumo,


                                              mesmo que longe ainda esteja


                                             de aprender a conjugar


                                             o verbo amar.






É tempo sobretudo


de deixar de ser apenas

a solitária vanguarda

de nós mesmos.

Se trata de ir ao encontro.

( Dura no peito, arde a límpida

verdade dos nossos erros. )

Se trata de abrir o rumo.



                                              Os que virão, serão povo,

                                             e saber serão, lutando.


Thiago de Mello

domingo, 15 de abril de 2012

Aula de Português

A linguagem

na ponta da língua,
tão fácil de falar
e de entender.

A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?

Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.


Figuras de gramática, equipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, seqüestram-me.


Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.


O português são dois; o outro, mistério.




Carlos Drummond Andrade




quarta-feira, 4 de abril de 2012

Medo





Medo de ver a polícia estacionar à minha porta.


Medo de dormir à noite.

Medo de não dormir.

Medo de que o passado desperte.


Medo de que o presente alce voo.


Medo do telefone que toca no silêncio da noite.


Medo de tempestades elétricas.


Medo da faxineira que tem uma pinta no queixo!


Medo de cães que supostamente não mordem.


Medo da ansiedade!


Medo de ter que identificar o corpo de um amigo morto.


Medo de ficar sem dinheiro.


Medo de ter demais, mesmo que ninguém vá acreditar nisso.


Medo de perfis psicológicos.


Medo de me atrasar e medo de ser o primeiro a chegar.


Medo de ver a letra dos meus filhos em envelopes.


Medo de que eles morram antes de mim, e que eu me sinta  culpado.


Medo de ter que morar com a minha mãe em sua velhice,  e na minha.

Medo da confusão.

Medo de que este dia termine com uma nota infeliz.

Medo de acordar e ver que você partiu.

Medo de não amar e medo de não amar o bastante.

Medo de que o que amo se prove letal para aqueles que amo.

Medo da morte.

Medo de viver demais.

Medo da morte.


Já disse isso.




Raymond Carver



Tradução: Cide Piquet