segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Sonhar


Eu tenho uma espécie de dever.

Dever de sonhar.

De sonhar sempre,

pois sendo mais do que um espetáculo de mim mesmo,

eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso.

E,assim,me construo a ouro e sedas,

em salas supostas,

invento palco,

cenário para viver o meu sonho entre luzes brandas

e músicas invisíveis.


Fernando Pessoa

sábado, 29 de agosto de 2009

Falar com Deus


SE EU QUISER FALAR COM DEUS

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar.


Gilberto Gil

Pilchas


Pilchas

Não pensem que são pirilampos
essas estrelas lá fora.
É a lua clara dos campos
refletida nas esporas.

Se uso vincha na testa
é pra ver o mundo mais claro.
Não vendo o mundo por frestas
lhe posso fazer reparos.

Sem cinturão nem guaiaca
me sinto quase em pêlo.
Quando meu laço desata
sou carretel de novelo.

Da bodega levo um trago
para matar aminha sede.
Meu chapéu de aba quebrada
beija-santo-de-parede.

Atirei as boleadeiras
contra a noite que surgia.
Noite a dentro entre as estrelas
se tornaram três-marias.

Luiz Coronel

Botox ?


Perucas, peruas e botoques


Tem coisas que não dão certo. Já falei aqui sobre perucas. Ainda existem homens que insistem. E todos dizem a mesma coisa: o careca vira ponto de referência para localizar alguém em algum lugar. Numa fila, por exemplo. “Tá vendo aquele careca? O segundo, depois dele”. Aí o sujeito coloca uma peruca e a pessoa fala: “Tá vendo o cara de peruca? Dois depois dele”.

E agora as pessoas resolveram usar botoques (botox, em inglês). Eu digo pessoas e não apenas as mulheres porque tem muito marmanjo por aí esticando a pele, disfarçando as rugas, querendo ficar rapazinho de novo. E estão todos e todas, passando pelo mesmo constrangimento: “Tá vendo aquela de botoques? Duas depois dela”.

Além de trazer vários problema paralelos. Se uma pessoa coloca botoques na testa você nunca mais vai saber se ela está preocupada ou não. Aquilo fica uma superfície de marfim esmaltado que brilha, reluz. Preocupante. Tem umas que fazem ao lado dos lábios. Jamais saberemos se ela está sorrindo um chupando uma uva.

Mas o pior é que o efeito dura apenas seis meses. Isso significa que aquelas rugas que a mulher cultivou em sessenta anos de vida, dia a dia, agora surgem no espelho a cada seis meses, de cara. Quem é que ganha com isso, fora os aplicadores de botoques? Se envelhecer em 60 anos já não foi (fisicamente) tão agradável, imagine em seis meses, minha senhora.

Como sempre, invenção daquelas loiras americanas. O botoques que é bom para as americanas é bom para as brasileiras, já dizia alguém nos anos 60.

Só que aqui no Brasil botox é botoques e, se esticarmos os olhos até o dicionário, vamos deixar a nossa testa enrugada de preocupação.

Tá lá. Botoques: rolhas que vedam orifício no bojo de pipas, barris e tonéis; bujão, esquiça. E o que é esquiça? Rolha...

Quer mais? Botoques: pequenos orifícios circulares feitos na orelha da rês para marcá-la.

Mas botoques ainda podem ser muito mais coisas. Pode ser, por exemplo, o esporão do galo e até mesmo um indivíduo gordo e baixinho.


E sabe aquelas “peças arredondadas de madeira, pedra ou concha, usada como enfeite pelos botocudos e outros indígenas sul-americanos, que as introduzem em furos feitos no lábio inferior ou nos lóbulos das orelhas”? Também se chamam botoques...

E você, minha senhora, que está me lendo agora tentando franzir a testa e não está conseguindo, não fique chateada comigo. Por que, do alto dos meus quase sessenta, e também meio enrugadinho, posso lhe garantir que ruga não é um bicho de sete cabeças. Nem de sete testas. Faz parte. Denotam no seu rosto – no mínimo – uma certa sabedoria, uma certa vida vivida, um conhecimento do mundo, um prazer de estar vivo.

Não vamos esconder nossas preocupações e muito menos nossos sorrisos. Vamos enfrentar a velhice que se aproxima de cara limpa. Sem metamorfoses.


Mario Prata


O Estado de S. Paulo 30/06/2004

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Avestruz


O filho de uma grande amiga, pediu, de presente pelos seus dez anos, uma avestruz. Cismou, fazer o que? Moram em um apartamento em Higienópolis, São Paulo. E ela me mandou um e-mail dizendo que a culpa era minha. Sim, porque foi aqui ao lado de casa, em Floripa, que o menino conheceu as avestruzes. Tem uma plantação, digo, criação deles. Aquilo impressionou o garoto.

Culpado, fui até o local saber se eles vendiam filhotes de avestruzes. E se entregavam a domicílio.

E fiquei a observar a ave. Se é que podemos chamar aquilo de ave. A avestruz foi um erro da natureza, minha amiga. Na hora de criar a avestruz, Deus devia estar muito cansado e cometeu alguns erros. Deve ter criado primeiro o corpo, que ser assemelha, em tamanho, a um boi. Sabe quando pesa uma avestruz? Entre 100 e 160 quilos, fui logo avisando a minha amiga. E a altura pode chegar a quase três metros. 2,7 para ser mais exato.

Mas eu estava falando da sua criação por Deus. Colocou um pescoço que não tem absolutamente nada a ver com o corpo. Não devia mais ter estoque de asas no paraíso, então colocou asas atrofiadas. Talvez até sabiamente para evitar que saíssem voando em bandos por aí assustando as demais aves normais.

Outro coisa que faltou foram dedos para ao pés. Colocou apenas dois dedos em cada pé. Sacanagem, Senhor!

Depois olhou para sua obra e não sabia se era uma ave ou um camelo. Tanto é que logo depois, Adão dando os nomes a tudo que via pela frente, olhou para aquele ser meio abominável e disse: Struthio Camelus Australis. Que é o nome oficial da coisa. Acho que o struthio deve ser aquele pescoço fino em forma de salsicha.

Pois um animal daquele tamanho deveria botar ovos proporcionais ao seu corpo. Outro erro. É grande, mas nem tanto. E me explicava o criador que elas vivem até os setenta anos e se reproduzem plenamente até os 40, entrando depois na menopausa, não tem, portanto, TPM. Uma avestruz com TPM é perigosíssima!

Podem gerar de 10 a 30 crias por ano, expliquei ao garoto, filho da minha amiga. Pois ele ficou mais animado ainda, imaginando aquele bando de avestruzes correndo pela sala do apartamento.

Ele insiste, quer que eu leve uma avestruz para ele de avião, no domingo. Não sabia mais o que fazer.

Foi quando descobri que elas comem o que encontram pela frente, inclusive pedaços de ferro e madeiras. Joguinhos eletrônicos, por exemplo. Máquina digital de fotografia, times inteiros de futebol de botão e, principalmente chuteiras. E, se descuidar, um mouse de vez em quando cai bem.

Parece que convenci o garoto. Me telefonou e disse que troca o avestruz por cinco gaivotas e um urubu.

Pedi para a minha amiga levar o garoto numa psicólogo. Afinal, tenho mais o que fazer do que ser gigolô de avestruz.


Mario Prata

Revista Época 17/07/04

Milionário ?


Como Ser Milionário Sem Fazer Força

É muito fácil ficar milionário. Basta para isso: dormir e acordar só pensando em dinheiro. Não abrir mão de qualquer possibilidade de ganhar dinheiro, mesmo que o contrário lhe dê imenso prazer. Ser frio e racional na hora de dar ou emprestar ao seu melhor amigo, parente, até irmão, cobrando os juros e as taxas exatas, embora seu coração lhe diga que desta vez você devia ser generoso.

Não ter qualquer escrúpulo, em qualquer ocasião. Pensar sempre que partido você pode tirar de uma situação desastrosa em que se encontram os seus companheiros de negócio. Não temer castigo de Deus, a opinião da sociedade, a perseguição da polícia. Pensar que um lucro grande é melhor do que um lucro pequeno, mas que um lucro pequeno, repetido muitas vezes, pode ser tão bom quanto um lucro grande.

Se, em suma, você tiver a gentileza exata para empregar no momento em que é necessário ser um cavalheiro, e a audácia e a grosseria precisas nos momentos em que a canalhice e a violência forem os melhores caminhos, se você não tiver nenhum problema de consciência, nenhuma dívida moral, nenhuma ambição de cultura, nenhum interesse por saber se os outros o acham bom e decente ou pérfido e sórdido, se, realmente, o seu único objetivo na vida é ficar milionário, então pra que é que eu estou escrevendo isto? É claro que você já é milionário.

Millôr Fernandes
Veja/1972

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Bola


A bola
O pai deu uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer que sentira ao ganhar a sua primeira bola do pai. Uma número 5 sem tento oficial de couro. Agora não era mais de couro, era de plástico. Mas era uma bola.

O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse “Legal!”. Ou o que os garotos dizem hoje em dia quando gostam do presente ou não querem magoar o velho. Depois começou a girar a bola, à procura de alguma coisa.

- Como é que liga? – perguntou.
- Como, como é que liga? Não se liga.

O garoto procurou dentro do papel de embrulho.

- Não tem manual de instrução?

O pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são outros. Que os tempos são decididamente outros.

- Não precisa manual de instrução?
- O que é que ela faz?
- Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela.
- O quê?
- Controla, chuta…
- Ah, então é uma bola.
- Claro que é uma bola.
- Uma bola, bola. Uma bola mesmo.
- Você pensou que fosse o quê?
- Nada, não.

O garoto agradeceu, disse “Legal” de novo, e dali a pouco o pai o encontrou na frente da tevê, com a bola nova do lado, manejando os controles de um videogame. Algo chamado Monsters Ball, em que times de monstrinhos disputavam a posse de uma bola em forma de blip eletrônico na tela ao mesmo tempo que tentavam se destruir mutuamente. O garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio rápido. Estava ganhando da máquina.

O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas. Conseguiu equilibrar a bola no paito do pé, como antigamente, e chamou o garoto.

- Filho, olha.

O garoto disse “Legal” mas não desviou os olhos da tela. O pai segurou a bola com as mão as e a cheirou, tentando recapturar mentalmente o cheiro de couro. A bola cheirava a nada. Talvez um manual de instrução fosse uma boa idéia, pensou. Mas em inglês, para a garotada se interessar.


Luis Fernando Verissimo

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Confissão


CONFISSÃO

Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde, ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem
e tudo que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, murmúrios
de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro — vinha azul e doido —
que se esfacelou na asas do avião.

In Claro Enigma
José Olympio, 1951
© Graña Drummond


CONFESSIONE
Tradução: Vera Lúcia de Oliveira

Non ho amato abbastanza il mio simile,
non ho cercato il verme né curato la rogna.
Ho solo proferito qualche parola,
melodiosa, tardi, al ritorno della festa.

Ho dato senza dare e baciato senza baci.
(Cieco è forse chi nasconde gli occhi
sotto la branda). E nella mezza-luce
tesori si mutilano, i più eccellenti.

Di quel che è rimasto, come comporre un uomo
e tutto ciò che egli implica di soave,
di concordanze vegetali, sussurri
di riso, dono, amore e pietà?

Non ho amato abbastanza nemmeno me stesso,
seppure prossimo. Non ho amato nessuno.
Salvo quell'uccello - veniva azzurro e folle -
che si è sfracellato sull'ala dell'aereo.

Carlos Drummond de Andrade

Mãos dadas


MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da
janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os
homens presentes,
a vida presente.


In Sentimento do Mundo
José Olympio, 1940
© Graña Drummond


Mani allacciate
Tradução: Vera Lúcia de Oliveira

Non sarò il poeta di un mondo caduco.
Non canterò neppure il mondo futuro.
Sono legato alla vita e guardo i miei compagni.
Sono taciturni ma nutrono grandi speranze.
In mezzo a loro, scruto l'enorme realtà.
Il presente è immenso, non allontaniamoci.
Non allontaniamoci troppo, teniamoci per mano.

Non sarò il cantore di una donna, di una storia,
non dirò i sospiri all'imbrunire, il paesaggio visto dalla
finestra,
non distribuirò narcotici o lettere di suicida,
non fuggirò alle isole né sarò rapito dai serafini.
Il tempo è la mia materia, il tempo presente, gli uomini
presenti,
la vita presente.


Carlos Drummond de Andrade

Pai e Mãe


DISTINÇÃO

O Pai se escreve sempre com P grande
em letras de respeito e de tremor
se é Pai da gente. E Mãe, com M grande.

O Pai é imenso. A Mãe, pouco menor.
Com ela, sim, me entendo bem melhor:
Mãe é muito mais fácil de enganar.

(Razão, eu sei, de mais aberto amor.)

Pedras


No meio do caminho


No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.



EN MEDIO DEL CAMINO

En medio del camino había una piedra,
había una piedra en medio del camino,
había una piedra,
en medio del camino habia una piedra.

Nunca me olvidaré de ese acontecimiento
en la vida de mis retinas tan fatigadas.
Nunca me olvidaré que en medio del camino
había una piedra,
había una piedra en medio del camino
en medio del camino había una piedra.

Gaston Figuera
In Poesía Brasileña Contemporanea
Montevideo, 1947


NEL MEZZO DEL CAMMINO

Nel mezzo del cammino c'era un sasso
c'era un sasso nel mezzo del cammino
c'era un sasso
nel mezzo del cammino c'era un sasso.

Non dimenticherò questa cosa accaduta
nella vita dei miei occhi così stanchi.
Non dimenticherò mai che nel mezzo del cammino
c'era un sasso
c'era un sasso nel mezzo del cammino
nel mezzo del cammino c'era un sasso.

Ruggero Jacobbi
Lirici Brasiliani dal Modernismo ad Oggi
Milano, 1960


IN THE MIDDLE OF THE ROAD

In the middle of the road was a stone
was a stone in the middle of the road
was stone
in the middle of the road was a stone.

I shall never forget that event
in the life of my so tired eyes.
I shall never forget that in the middle of the road
was a stone
was a stone in the middle of the road
in the middle of the road was a stone.

John Nist
In The Middle Of The Road
Tucson, 1965


MITTEN IM WEG

Mitten im Weg lag ein Stein
Lag ein Stein mitten im Weg
Lag ein Stein
Mitten im Weg lag ein Stein.

Nie werde ich dieses Ereignis
Im Leben meiner so ermudeten Netzhaut vergessen.
Nie werde ich vergessen dass mitten im Weg
Lag ein Stein
Lag ein Stein mitten im Weg
Mitten im Weg lag ein Stein.

Curt Meyer-Clason
Poesie
Frankfurt am Main, 1965


AU MILIEU DU CHEMIN

Au milieu du chemin y avait une pierre
y avait une pierre au milieu du chemin
y avait une pierre
au milieu du chemin y avait une pierre.

Jamais je n'oublierai cet évènement
dans la vie de mes rétines si fatiguées.
Jamais je noublierai qu'au milieu du chemin
y avait une pierre
y avait une pierre au milieu du chemin
au milieu du chemin y avait une pierre.

Inventário


Inventário do Desamor


Deixo contigo meu sangue
meus livros e minhas horas.

E a dor cansada na insônia
contra o lençol das demoras.

Deixo a paz que eu encontrei
mas me fugiu entre os dedos.

E a chave surda e sem uso
da gaveta dos meus medos.

Deixo perdido um poema
e não por esquecimento:

mas pra que um dia eu te encontre
na leve pauta dos ventos.

Deixo contigo meu ventre
meus olhos, minhas entranhas.

E com mãos nuas, reflito:
- Perde mais quem hoje ganha?

Deixo contigo meus beijos
meu suor, meu desabrigo.

Deixo roupas, documentos.
De meu, nada irá comigo.

Deixo a sombra, de teimosa.
Deixo as fotos, deixo a casa.

Do poço mais infinito
só levo a alma, presa e rasa.

Guri


GURI



Das roupas velhas do pai queria que a mãe fizesse
Uma mala de garupa e uma bombacha e me desse

Queria boinas e alpargatas e um cachorro companheiro
Pra me ajudar a botar as vacas no meu petiço sogueiro

Hei de ter uma tabuada e o meu livro "Queres Ler"
Vou aprender a fazer contas e algum bilhete escrever
Pra que a filha do seu Bento saiba que ela é meu bem querer
E se não for por escrito eu não me animo a dizer

Quero gaita de oito baixos pra ver o ronco que sai
Botas feitio do Alegrete e esporas do Ibirocai
Lenço vermelho e guaiaca compradas lá no Uruguai
Pra que digam quando eu passe sai igualzito ao pai

E se Deus não achar muito tanta coisa que eu pedi
Não deixe que eu me separe deste rancho onde nasci
Nem me desperte tão cedo do meu sonho de guri
E de lambuja permita que eu nunca saia daqui.

João Batista Machado/Julio Machado da Silva Filho

Analfabeto político


"O pior analfabeto é o analfabeto político.

Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos.

Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil, que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo."


Bertolt Brecht
(1898-1956)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O Bicho


O Bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.


Manuel Bandeira

Aniversário


Soneto de aniversário

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece....
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.


Vinicius de Moraes

Rio de Janeiro, 1942

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Leituras


NO MUNDO DAS LETRAS


Vem à livraria nas horas de maior movimento, mas isso, já se sabe, é de propósito: facilita-lhe o trabalho. Rouba livros. Faz isso há muitos anos, desde a infância, praticamente. Começou roubando um texto escolar que precisava para o colégio: foi tão fácil que gostou; e passou a roubar romances de aventura, livros de ficção científica, textos sobre arte, política, ciência, economia. Aperfeiçoou tanto a técnica que chegava a furtar quatro, cinco livros de uma vez. Roubou livros em todas as cidades por onde passou. Em Londres, uma vez, quase o pegaram; um incidente que recorda com divertida emoção.



No início, lia os livros que roubava. Depois, a leitura deixou de lhe interessar. A coisa era roubar por roubar, por amor à arte; dava os livros de presente ou simplesmente os jogava fora. Mas cada vez tinha menos tempo para ir às livrarias; os negócios o absorviam demais. Além disso, não podia, como empresário, correr o risco de um flagrante. Um problema - que ele resolveu como resolve todos os problemas, com argúcia, com arrojo, com imaginação. Zás! Acabou de surrupiar um. Nada de espetacular nessa operação: simplesmente pegou um pequeno livro e o enfiou no bolso. Olha para os lados; aparentemente ninguém notou nada. Cumprimenta-me e se vai.



Um minuto depois retorna. Como é que me saí, pergunta, não sem ansiedade. Perfeito, respondo, e ele sorri, agradecido. O que me deixa satisfeito; elogiá-lo é não apenas um ato de compaixão, é também uma medida de prudência. Afinal, ele é o dono da livraria.


Moacyr Scliar

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Mudanças



Mudam-se os Tempos



Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o Mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.


Continuamente vemos novidades,

Diferentes em tudo da esperança;

Do mal ficam as mágoas na lembrança

,E do bem, se algum houve, as saudades.


O tempo cobre o chão de verde manto,

Que já coberto foi de neve fria,

E em mim converte em choro o doce canto.


E, afora este mudar-se cada dia,

Outra mudança faz de mor espanto:

Que não se muda já como soía.


Luis Vaz de Camões

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Sutilmente



E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace
Quando eu estiver louco
Subitamente se afaste
Quando eu estiver fogo
Suavemente se encaixe

E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace
E quando eu estiver louco
Subitamente se afaste
E quando eu estiver bobo
Sutilmente disfarce

Mas quando eu estiver morto
Suplico que não me mate, não
Dentro de ti, dentro de ti

Mesmo que o mundo acabe, enfim
Dentro de tudo que cabe em ti

Samuel Rosa/ Nando Reis

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Miss Imperfeita


Eu não sirvo de exemplo para nada, mas, se você quer saber se isso é possível, me ofereço como piloto de testes. Sou a Miss Imperfeita, muito prazer.


Uma imperfeita que faz tudo o que precisa fazer, como boa profissional, mãe e mulher que também sou: trabalho todos os dias, ganho minha grana, vou ao supermercado três vezes por semana, decido o cardápio das refeições, levo os filhos no colégio e busco, almoço com eles, estudo com eles, telefono para minha mãe todas as noites, procuro minhas amigas, namoro, viajo, vou ao cinema, pago minhas contas, respondo a toneladas de e-mails, faço revisões no dentista, mamografia, caminho meia hora diariamente, compro flores para casa, providencio os consertos domésticos, participo de eventos e reuniões ligados à minha profissão e ainda faço escova toda semana - e as unhas! E, entre uma coisa e outra, leio livros.

Portanto, sou ocupada, mas não uma workaholic. Por mais disciplinada e responsável que eu seja, aprendi duas coisinhas que operam milagres.
Primeiro: a dizer NÃO. Segundo: a não sentir um pingo de culpa por dizer NÃO. Culpa por nada, aliás.

Existe a Coca Zero, o Fome Zero, o Recruta Zero. Pois inclua na sua lista a Culpa Zero.

Quando você nasceu, nenhum profeta adentrou a sala da maternidade e lhe apontou o dedo dizendo que a partir daquele momento você seria modelo para os outros. Seu pai e sua mãe, acredite, não tiveram essa expectativa: tudo o que desejaram é que você não chorasse muito durante as madrugadas e mamasse direitinho.

Você não é Nossa Senhora. Você é, humildemente, uma mulher.

E, se não aprender a delegar, a priorizar e a se divertir, bye-bye vida interessante.

Porque vida interessante não é ter a agenda lotada, não é ser sempre politicamente correta, não é topar qualquer projeto por dinheiro, não é atender a todos e criar para si a falsa impressão de ser indispensável.

É ter tempo. Tempo para fazer nada. Tempo para fazer tudo. Tempo para dançar sozinha na sala. Tempo para bisbilhotar uma loja de discos.

Tempo para sumir dois dias com seu amor. Três dias. Cinco dias!

Tempo para uma massagem. Tempo para ver a novela. Tempo para receber aquela sua amiga que é consultora de produtos de beleza. Tempo para fazer um trabalho voluntário. Tempo para procurar um abajur novo para seu quarto. Tempo para conhecer outras pessoas. Voltar a estudar. Para engravidar. Tempo para escrever um livro que você nem sabe se um dia será editado. Tempo, principalmente, para descobrir que você pode ser perfeitamente organizada e profissional sem deixar de existir.


Porque nossa existência não é contabilizada por um relógio de ponto ou pela quantidade de memorandos virtuais que atolam nossa caixa postal.

Existir, a que será que se destina? Destina-se a ter o tempo a favor, e não contra.

A mulher moderna anda muito antiga. Acredita que, se não for super, se não for mega, se não for uma executiva ISO 9000, não será bem avaliada. Está tentando provar não-sei-o-quê para não-sei-quem.

Precisa respeitar o mosaico de si mesma, privilegiar cada pedacinho de si. Se o trabalho é um pedação de sua vida, ótimo!

Nada é mais elegante, charmoso e inteligente do que ser independente.


Mulher que se sustenta fica muito mais sexy e muito mais livre para ir e vir. Desde que lembre de separar alguns bons momentos da semana para usufruir essa independência, senão é escravidão, a mesma que nos mantinha trancafiadas em casa, espiando a vida pela janela.

Desacelerar tem um custo. Talvez seja preciso esquecer a bolsa Prada, o hotel decorado pelo Philippe Starck e o batom da M.A.C.

Mas, se você precisa vender a alma ao diabo para ter tudo isso, francamente, está precisando rever seus valores. E descobrir que uma bolsa de palha, uma pousadinha rústica à beira-mar e o rosto lavado (ok, esqueça o rosto lavado) podem ser prazeres cinco estrelas e nos dar uma nova perspectiva sobre o que é, afinal, uma vida interessante’.

Martha Medeiros

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Belo


Belo Belo


Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.

Manuel Bandeira

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Contrários


O contrário do amor


O contrário de bonito é feio, de rico é pobre, de preto é branco, isso se aprende antes de entrar na escola. Se você fizer uma enquete entre as crianças, ouvirá também que o contrário do amor é o ódio. Elas estão erradas. Faça uma enquete entre adultos e descubra a resposta certa: o contrário do amor não é o ódio, é a indiferença.

O que seria preferível, que a pessoa que você ama passasse a lhe odiar, ou que lhe fosse totalmente indiferente? Que perdesse o sono imaginando maneiras de fazer você se dar mal ou que dormisse feito um anjo a noite inteira, esquecido por completo da sua existência? O ódio é também uma maneira de se estar com alguém. Já a indiferença não aceita declarações ou reclamações: seu nome não consta mais do cadastro.

Para odiar alguém, precisamos reconhecer que esse alguém existe e que nos provoca sensações, por piores que sejam. Para odiar alguém, precisamos de um coração, ainda que frio, e raciocínio, ainda que doente. Para odiar alguém gastamos energia, neurônios e tempo. Odiar nos dá fios brancos no cabelo, rugas pela face e angústia no peito. Para odiar, necessitamos do objeto do ódio, necessitamos dele nem que seja para dedicar-lhe nosso rancor, nossa ira, nossa pouca sabedoria para entendê-lo e pouco humor para aturá-lo.

O ódio, se tivesse uma cor, seria vermelho, tal qual a cor do amor.

Já para sermos indiferentes a alguém, precisamos do quê? De coisa alguma. A pessoa em questão pode saltar de bung-jump, assistir aula de fraque, ganhar um Oscar ou uma prisão perpétua, estamos nem aí. Não julgamos seus atos, não observamos seus modos, não testemunhamos sua existência. Ela não nos exige olhos, boca, coração, cérebro: nosso corpo ignora sua presença, e muito menos se dá conta de sua ausência. Não temos o número do telefone das pessoas para quem não ligamos. A indiferença, se tivesse uma cor, seria cor da água, cor do ar, cor de nada.

Uma criança nunca experimentou essa sensação: ou ela é muito amada, ou criticada pelo que apronta. Uma criança está sempre em uma das pontas da gangorra, adoração ou queixas, mas nunca é ignorada. Só bem mais tarde, quando necessitar de uma atenção que não seja materna ou paterna, é que descobrirá que o amor e o ódio habitam o mesmo universo, enquanto que a indiferença é um exílio no deserto.


Martha Medeiros

Viver


A Arte de Viver


Uns cantam, uns dançam, outros fazem embaixadas por 24 horas sem deixar a bola cair. Uns são campeões de pára-quedismo, uns pintam telas abstratas, outros equilibram pratos na ponta do nariz. Vivem nas revistas, na tv, dando entrevistas.

Quem não tem um talento especial acaba se sentindo um penetra nesta festa onde todos tem tido os seus quinze minutos de Caras. Uns sabem desfiar, outros são chefes de cozinha, há os reis do pagode. Uns pilotam carros, outros apresentam talk shows, volta e meia aparece um novo ilusionista. Como não se sentir descartado nesse planeta de tantos destaques? Simples: valorizando nossos pequenos grandes talentos.

Viver é uma arte.

A arte de conversar com desconhecidos, por exemplo. De se revelar em poucas palavras pra uma pessoa que não sabe nada de você, e você nada dela, e estabelecer um contato que seja agradável e frutífero para ambas as partes, evitando silêncios constrangedores ou, pior, o sono.

A arte de ser pontual. Para pouquíssimos. Calcular exatamente o tempo que se chega de um ponto a outro da cidade e ter a capacidade de prever o imprevisto: trânsito mais caótico que o normal, chuva, falta de lugar pra estacionar.

Atender um paciente na hora marcada.

Decolar no horário previsto.

Não entrar atrasado no teatro. Um dom.

A arte de manter uma amizade por anos a fio. Aquele amigo da adolescência que foi morar em outro país. Aquela amiga com quem você se desentendeu por causa de uma bobagem. Aquela turma que já não pensa como você. É uma arte saber onde e quando procurá-los, telefonar nos momentos especiais, esquecer as picuinhas, aceitar seus novos pontos de vista, lembrar e rir juntos do passado.

Um talento a ser aprimorado diariamente.

A arte de se isolar. De penetrar no nosso íntimo, de buscar ajuda na meditação, de deliberadamente não pertencer a grupo nenhum e fundar uma natureza própria, e ainda assim não ser um ermitão, ser apenas alguém que de tempos em tempos se retira para se reencontrar. Há uma técnica pra isso.


A arte de perceber segundas intenções, a arte de se controlar, a arte de ficar prioridades, a arte de saber furar os bloqueios, a arte de não desistir na primeira dificuldade, a arte de não viver uma vida de aparências, a arte de andar desarmado, metafórica e literalmente falando. Cada um de nos mereceria ao menos uma reportagem para homenagear nossos dons mais secretos, aqueles que acontecem bem longe dos holofotes.

O dom de viver sem aplauso e sem platéia. O glorioso e secreto dom de vencer os dias.


Martha Medeiros

Non stop

Frases



A linguagem de seu coração é que irá determinar a maneira correta de descobrir e manejar a sua espada. (Paulo Freire)


Quem já passou por essa vida e não viveu, pode ser mais, mas sabe menos do que eu...(Vínicius de Moraes)


A trsiteza não existe. Quando estamos tristes, é porque a felicidade voltou a despistar-nos naquele longo caminho atrás dela. (Tim Maia)


Não há arauto mais perfeito da alegria do que o silêncio. Eu sentir-me-ia muito pouco feliz se me fosse possível dizer a que ponto o sou. (Shakespeare)


Sabemos o que somos, mas não sabemos o que poderemos ser. (Shakespeare)

O presidente


O presidente do Brasil


Tem uns caras que a gente olha para eles e dá vontade de fazer um bulling neles. Sei que o bulling é feio e tudo mais, só que uns e outros parece que pedem:

– Queria ser bullimizado...

Não porque sejam tímidos. Nem porque sejam nerds ou, como se dizia antes, crentes. Nada disso. É aquela arrogância silenciosa, manja? Aquele desdém pelos outros seres respirantes, pelos humanos de qualidade inferior. É por isso que eles ficam quietos. Eles não toleram interagir com quem não é do nível deles. Eles pedem é um bom bulling, sim, senhor.


Conheci um cara assim, uma vez. Um mestre de xadrez juvenil. Naquele tempo, o xadrez era muito popular no Brasil, por causa do Mequinho. Lembra do Mequinho? No mundo inteiro, o Mequinho só perdia para o Karpov e o Korchnoi. Derrotava todos os outros seis bilhões de habitantes do planeta Terra. Então, os brasileiros eram muito orgulhosos do seu talento inato para o enxadrismo, prova das habilidades intelectuais desse povo inzoneiro.


Aí chegou aquele guri. Veio ao IAPI trazido pela Biblioteca Romano Reiff. Ia jogar uma série de partidas de xadrez contra nós, os guris do bairro. Olhei bem para ele. Usava óculos, claro, e, claro, era meio gorducho. Meio molengoide, também. Jeito de moscão. Foi apresentado como uma celebridade.

– É um gênio! – exclamavam as professoras da biblioteca. – Um gênio! Esse guri ainda vai ser presidente do Brasil.


Fiquei ansioso para conhecê-lo. Nunca tinha visto um gênio ou um futuro presidente. Além do mais, eu jogava xadrez, e achava que jogava bem. Apresentei-me para enfrentá-lo. Fiquei pensando: imagina se venço esse gênio? Aí o gênio sou eu!


Então, fui todo sorridente falar com ele. Achei que poderíamos travar uma conversa inteligente e tal. Ao cumprimentá-lo, fiz uma brincadeira, disse que ele que se cuidasse, pois a minha abertura na tática pastorzinho era irresistível. Algo nesse estilo. Mas o gênio nem olhou para mim. Nem olhou! Exalou um suspiro de enfaro, virou-se para a professora e avisou que estava pronto para jogar.


Eu ali, humilhado, pensei: que vontade de dar um cascudo nesse exibido. Dar cascudo, na época, era como fazer bulling hoje. Tive ganas de lhe aplicar uns cascudos. Mas me contive. Decidi que minha vingança seria no tabuleiro. Esse gênio vai ver com quem ele está lidando, prometi para mim mesmo.


Sentamo-nos todos atrás das peças, uns 20 jogadores de 10 ou 12 anos de idade. O gênio permaneceu de pé, sério, olhar distraído. Eu estava com as pretas. Ele foi mexendo as peças de um tabuleiro, outro e outro, até que parou em frente à minha mesa. Continuou sem me olhar. Abriu com o peão do bispo, o que me surpreendeu um pouco. O que aquele maldito gênio molenga pretendia com aquele maldito peão do bispo? Hmmm...


Em todo caso, tentei ser cauteloso na abertura. Ele seguiu jogando com os outros. Cada vez que voltava e passava por mim, passava sem me olhar. Olhava só para o tabuleiro. Mexia rapidamente nas peças e deslizava para o lado. Não sei o que aquele cara fazia, não sei como fazia, mas o fato é que em cinco ou seis movimentos aquelas peças dele estavam todas lá na frente, acossando meu rei. Os bispos e os cavalos dele se multiplicavam, nunca vi tanto bispo e tanto cavalo num jogo, as torres zuniam à direita e à esquerda, a rainha dele parecia um trem, atropelando meus peões desnutridos, ameaçando meus cavalos pangarés. O guri jogava com uma agressividade assassina, com uma frieza de carrasco, acicatava meu rei pelos lados e pelo centro. Eu pensava e pensava, suava de tanto pensar. Tentava me defender com minhas parcas peças, mas as ia perdendo a cada lance. Oprimido, angustiado, encurralado, queria gritar por socorro. Mas ninguém ia me acudir. Todos os adversários do gênio estavam na mesma situação. Perdi. Perdemos. Ele venceu e se foi sem um sorriso. Era rotina para ele.


Não sei como aquele cara não é presidente do Brasil, mas compreendo seu ar de tédio. Era a expressão de quem está farto de tanto vencer. Vitórias em demasia às vezes fazem mal. Alguém já reparou nas arquibancadas da torcida do São Paulo? Meia dúzia de torcedores bocejando. Os são-paulinos não acham mais graça na vida, porque a vida só tem graça quando existe desafio. O São Paulo só vai recuperar o brio, a pulsação de um time de verdade, quando cair para a Segunda Divisão. Haverá de cair, para seu próprio proveito. Vencer demais também faz mal. O que me leva a concluir: bem que devia ter feito um bulling naquele gorducho.
David Coimbra
Texto publicado na página 51 de Zero Hora 05/08/09

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A invenção do "o"



A Invenção do “O”



Na era da pedra lascada


da língua falada


antes de inventarem a letra


que imitava a lua


as palavras diziam nada


e nada levava a nada


(aliás, nem precisava rua).




A frase ficava estática


de maneira majestática


a grandes falas presumíveis


permaneciam indizíveis


- imagens invisíveis


a distâncias invencíveis.




Vivia-se em cavernas mentais


numa inércia dramática.


Ir e vir, nem pensar


ninguém mudava de lugar


que dirá de sintática.




Aí inventaram o “O”


e foi algo portentoso.


Assombroso, maravilhoso.


Tudo começou a rolar


e a se movimentar.




O Homem ganhou “horizontes”


e palavras viraram pontes


e hoje existe a convicção


que sem a sua invenção


não haveria Civilização.




Um dia, como o raio inaugural


sobre aquela célula no pantanal


que deu vida a tudo,


veio o acento agudo.




E o homem pôde cantar vitória.


E começou a História.


(Depois ficamos retóricos e até um pouco gongóricos).




Luis Fernando Verissimo

Luminoso

Por-do sol em Porto Alegre (imagem internet)

Eu luminoso não sou


Eu luminoso não sou.
Nem sei que haja

Um poço mais remoto, e habitado

De cegas criaturas, de histórias e assombros.

Se, no fundo poço, que é o mundo

Secreto e intratável das águas interiores,

Uma roda de céu ondulando se alarga,

Digamos que é o mar: como o rápido canto

Ou apenas o eco, desenha no vazio irrespirável

O movimento de asas.

O musgo é um silêncio,

E as cobras-d’água dobram rugas no céu,

Enquanto, devagar, as aves se recolhem.


José Saramago

Ismalia


ISMÁLIA


Quando Ismália enlouqueceu,

Pôs-se na torre a sonhar...

Viu uma lua no céu,

Viu outra lua no mar.


No sonho em que se perdeu,

Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,

Queria descer ao mar...


E, no desvario seu,

Na torre pôs-se a cantar...

Estava perto do céu,

Estava longe do mar...


E como um anjo pendeu

As asas para voar...

Queria a lua do céu,

Queria a lua do mar...


As asas que Deus lhe deu

Ruflaram de par em par...

Sua alma subiu ao céu,

Seu corpo desceu ao mar...


Alphonsus de Guimaraens

Bem-aventurados


BEM-AVENTURADOS


Bem-aventurados os pintores escorrendo luz

Que se expressam em verde

Azul

Ocre

Cinza

Zarcão!

Bem-aventurados os músicos...

E os bailarinos

E os mímicos

E os matemáticos...

Cada qual na sua expressão!

Só o poeta é que tem de lidar com a ingrata linguagem alheia...

A impura linguagem dos homens!


Mario Quintana

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Cartas


Caro Jesus


O jornal italiano Corriere della Sera publicou uma divertida seleção de frases, tiradas do livro "Caro Gesù", recém-lançado pela editora Sonzogno. É uma amostra do que as crianças italianas costumam escrever nas redações da escola, nas aulas de catecismo e em bilhetinhos de final de ano.
Na Itália, o Papai Noel não é assim tão popular e, no Natal, a garotada costuma garantir seus pedidos escrevendo diretamente pra chefia, o Gesù Bambino, como eles chamam o Menino Jesus.
Divirta-se:
- "Querido Jesus, a girafa você queria assim mesmo ou foi um acidente?". (Dante)
- "Querido Menino Jesus, todos os meus colegas da escola escrevem para o Papai Noel, mas eu não confio naquele lá. Prefiro você." (Sara)
- "Querido Menino Jesus, obrigado pelo irmãozinho. Mas na verdade eu tinha rezado pra ganhar um cachorro." (Gianluca)
- "Querido Jesus, por que você não está inventando nenhum animal novo nos últimos tempos? A gente vê sempre os mesmos." (Laura)
- "Querido Jesus, por favor ponha um pouco mais de férias entre o Natal e a Páscoa. No meio, agora está sem nada." (Marco)
- "Querido Jesus, o padre Mário é seu amigo ou você conhece ele só do trabalho?" (Antonio)
- "Querido Menino Jesus, por gentileza, mande-me um cachorrinho. Eu nunca pedi nada antes, pode conferir." (Bruno)
- "Querido Jesus, talvez Caim e Abel não se matassem tanto se tivessem um quarto pra cada um. Com o meu irmão funciona." (Lorenzo)
- "Querido Jesus, no Carnaval eu vou me fantasiar de diabo, você tem alguma coisa contra?" (Michela)
- "Querido Jesus, eu gosto muito do padre-nosso. Você escreveu tudo de uma só vez, ou você teve que ficar apagando? Qualquer coisa que eu escrevo eu tenho que refazer um monte de vezes." (Franco)
- "Querido Jesus, o meu nome é Andrea e o meu físico é baixo e magrinho, mas não fraco. O meu irmão diz que a minha cara é horrorosa. Mas eu gosto, porque assim não vou ter aquelas esposas que ficam o tempo todo pegando no pé, fazendo fofoca." (Andrea)
- "Querido Jesus, você é invisível mesmo ou é só um truque?" (Giovanni)
- "Querido Jesus, na minha opinião, é impossível existir um Deus melhor do que você. Bom, eu só queria que você soubesse, mas estou te dizendo isso não é porque você é Deus." (Valerio)
- "Querido Jesus, em vez de você fazer as pessoas morrerem e aí criar novas pessoas, por que você não fica com as que já tem?" (Marcello)
- "Querido Jesus, se não tivesse acontecido a extinção dos dinossauros não ia ter lugar para nós, você fez muito bem." (Maurizio)
- "Querido Menino Jesus, não compre os presentes na loja embaixo no prédio, a mamãe diz que eles são uns ladrões. Muito melhor no super." (Lucia)
- "Querido Jesus, na escola nós estudamos que Thomas Edison inventou a luz. Mas no catecismo dizem que foi você. Pra mim ele roubou a sua idéia." (Daria)

Kledir Ramil

Crônica



Mais homens de laboratório




Na tentativa de aperfeiçoar ainda mais o ser humano, resolvi fazer novas experiências de laboratório e comecei a misturar o DNA de homens com o de alguns animais.Certas qualidades específicas só podem ser encontradas nos bichos. São atributos testados à exaustão através dos séculos, portanto sem contra-indicações. E se funcionam neles, devem funcionar na gente.




Imagine um homem com asas de águia ou com a força de um touro. Imagine um sujeito com o apetite sexual dos coelhos.




Sei que minha idéia não é original. Já correram na frente. É o caso do homem-aranha. Todo mundo viu no cinema que o cara ficou fabuloso. É um bom projeto. Fora a fantasia, que achei de mau gosto. Mas sem dúvida ficou um ser superior, capaz de proezas incríveis, como beijar de cabeça pra baixo.




Outra mistura que faz bastante sucesso é o homem-morcego. Batman é um milionário que, na falta do que fazer, combate o crime vestido de vampiro do bem. Tinha tudo pra dar errado, mas funciona. Talvez o segredo seja esse modelo de Drácula politicamente correto. Musculoso, bonitão e sem caninos afiados.




A mulher-gato é uma gata, quer dizer, é uma mulher linda. Manhosa como os felinos e cheia de ronronares insinuantes. Mais uma que seduziu o público e foi parar em Hollywood.




Já o lobisomem não deu certo, virou um monstro. Também pudera, é feio, peludo e pelo que dizem tem desvio de comportamento. A Disney ainda tentou resgatar o projeto através de Mogli, o menino-lobo, mas ninguém garante que o guri, quando crescer, não vai querer sangue.A idéia de misturar o homem com nosso primo, o macaco, já foi usada. E com bons resultados. Tarzan virou uma estrela. É adorado em todo mundo, da selva ao asfalto. Arranjou uma companheira, a Chita e uma namorada, a Jane. Ou será que foi o contrário?




Como dá pra perceber, muita coisa ainda pode ser feita.




Imagine um centauro de verdade, meio homem, meio cavalo. Mulheres com a beleza das garças. Atletas com a velocidade dos leopardos. Jogadores de futebol com a destreza das focas... Não, esquece, esse já fizeram.




Se você pretende colocar minhas idéias em prática, tenha muito cuidado. Quem trabalha em laboratório sabe que a primeira regra num lugar desses é a organização. É preciso catalogar tudo direitinho e colocar o rótulo certo em cada vidro. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Se você confundir os genomas pode ter surpresas desagradáveis.




Ninguém vai querer, por exemplo, um sujeito com características do bicho-preguiça. E muito menos um cara com cheiro de gambá.




Kledir Ramil

sábado, 1 de agosto de 2009

Barbeiro




O barbeiro



Gostei muito desta anedota: um homem sem dois braços foi ao barbeiro.



O barbeiro envolveu o cliente no penteador. Não me perguntem por que aquele imenso pano branco que os barbeiros lançam sobre os corpos dos clientes e amarram na altura de seus pescoços se chama penteador.



Não tem sentido, mas se chama penteador, sim, senhores.



Pois bem, o homem sem os dois braços estava sendo atendido pelo barbeiro.



Quando o barbeiro começou a cometer uma série de barbeiragens com o cliente sem os dois braços, cortando-lhe levemente o lábio superior ao aparar o bigode, logo em seguida cortando a orelha do cliente, o que ocasionou perda de sangue que foi estancada por uma pedra mágica usada pelos barbeiros, minutos depois dando um verdadeiro talho na bochecha do cliente na altura do osso zigomático, isto é, perto do ouvido, quem vem da direção do nariz, ali nas adjacências do rosto, quando também verteu sangue, igual e prontamente estancado pela pedra mágica.


***
Até que o barbeiro terminou de fazer a barba do cliente. Não me perguntem como um homem sem os dois braços, obviamente sem as duas mãos, consegue puxar dinheiro do bolso para pagar o barbeiro, o certo é que o cliente em causa não era inadimplente nem caloteiro e pagou o preço do serviço da barba ao barbeiro.



Foi quando o barbeiro, despedindo-se, cometeu a última tentativa de ser cordial, também para amenizar os pequenos estragos que fizera no rosto do paciente (nesta altura não era mais cliente, era paciente de três ameaças de incisões cirúrgicas).



***
O que perguntou na despedida o barbeiro para o cliente minutos antes sangrante: “Diga-me, eu já não tinha atendido o senhor numa outra vez?”.



E o cliente de pronto respondendo ao barbeiro: “Não. Nunca me atendeu antes. Eu perdi estes dois braços numa explosão na Guerra do Vietnã”.



Sensacional.



* Texto publicado na Zero Hora 01/08/09