quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Como surgiram as sílabas




Pense no pato.

Pato.

Pato, pato, pato.

Agora imagine que você é um sumério vivendo há 5.500 anos sem saber como escrever pato, porque nunca ninguém havia escrito pato antes, mas TENDO que escrever pato para, digamos, registrar a venda de patos para um amorita que adora comer pato, como ele gosta de pato, esse maldito amorita.

O que fazer?

Bem, você sabe, de ouvido, que pato é pá + tô. É assim que se fala pato:

_ Pa… to.

“Pá” você sabe como escrever: é o desenho de uma pá, a ferramenta, coisa fácil. É isso que lhe dá a ideia de usar o desenho que representa uma pá para simbolizar a metade da palavra pato. Agora você só precisa imaginar um símbolo para tô. Embora a gramática ainda não tenha sido inventada, você se lembra da contração da primeira pessoa do singular do verbo estar conjugado no presente do indicativo, “estou”, que é, exatamente, “tô”. Aí você desenha algo que simboliza “to”. Pode ser qualquer coisa. Um quadrado, digamos. Pronto: você já pode escrever “pato” unindo os desenhos que significam uma pá e eu estou. Se você inverter a posição dos símbolos, escreverá “topa”. E se você quiser escrever “torre” já terá a primeira sílaba pronta, o “to”, faltando criar um desenho para “re”. Criado esse símbolo, você também poderá escrever “reto” e “pare”.

Você, meu caro sumério, acabou de inventar a escrita.

Pois foi seguindo mais ou menos esse raciocínio que os sumérios transformaram a escrita cuneiforme, que tinha um desenho para cada coisa ou sentimento, em uma escrita que representava as sílabas. Quer dizer: foi assim que os sumérios inventaram a escrita FONÉTICA.

Foi um invento genial, um grande avanço para a humanidade, porque existem muito mais coisas e sentimentos do que sílabas. Com algumas sílabas você registra tudo o que há sobre a terra e sob o sol. Supimpa, não é?

Ouié, mas os sumérios não chegaram à sofisticação de inventar as letras, o que seria ainda mais genial, porque com apenas e tão-somente e nada mais do que 23 letras você escreve TUDO o que existe sobre a terra e sob o sol. Pare agora e reflita sobre isso: 23 e três símbolos, combinados, representam TUDO.

Parece muito simples para você, alfabetizado desde criancinha. É que tudo parece simples depois de ter sido criado. O ser humano, para chegar à primeira forma de escrita, a cuneiforme, levou milhares de anos. Milhões, até: os pictogramas sumérios foram concebidos por volta de 8 mil anos antes de Cristo. Lentamente, a escrita cuneiforme foi sendo aperfeiçoada, até evoluir para a silábica. Isso se deu há uns 5.500 anos. A partir daí, o homem levaria outros dois mil anos até inventar o alfabeto, glória que coube aos criativos fenícios.

Até que essa façanha fosse realizada, no entanto, o ato de ler & escrever demandou comovente esforço por parte dos jovens do mundo antigo. Para tanto, os sumérios instituíram a primeira escola formal do mundo, chamada “edubba”, ou “casa das placas”. Isso porque a escrita cuneiforme se dava em placas de argila, material abundante nas margens dos dadivosos rios Tigre e Eufrates. A edubba era um anexo do templo ou do palácio real. Os professores eram mantidos por elevadas taxas pagas pelos pais dos alunos, todos de famílias de posses. O método de ensino era implacável. Os meninos, e só os meninos, nunca as meninas, eles ingressavam na escola na primeira infância e dela só saíam adultos. Tinham de memorizar centenas de sinais e podiam ser castigados com dureza à menor falta, como falar sem permissão, perambular pela rua ou não ter habilidade suficiente para desenhar o símbolo indicado pelo mestre.

Em 2.000 antes de Cristo, um desses alunos vacilantes cansou-se de apanhar e apelou para a influência paterna. O velho acedeu. Convidou o professor para que o visitasse em sua casa.

Um texto de 40 séculos de idade conta o que se passou então:

“O professor foi trazido da escola e, ao entrar na casa, fizeram com que se sentasse no lugar de honra. O escolar cuidou dele e o serviu, e tudo o que havia aprendido da arte da escrita em placas ele revelou para o seu pai”.

Em seguida, o pai, vestindo o professor com “um traje novo”, pôs um valioso anel em sua mão. O professor encantou-se de tal maneira com a generosidade da família que de pronto esqueceu o que o levara a castigar o aluno.

_ Você realizou muito bem as atividades escolares _ disse ao rapaz. _ Você se tornou um homem sábio… Isso há quatro mil anos. Como se vê, a corrupção não foi inventada no Brasil. Como já dizia o Eclesiastes, não há nada de novo debaixo do sol.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Viver




Quem nunca quis morrer
Não sabe o que é viver
Não sabe que viver é abrir uma janela
E pássaros pássaros sairão por ela
E hipocampos fosforescentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar... Ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar...
e voar...
cada vez para mais alto
Como depois de se morrer!




Mario Quintana

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Vida




Vida

Vida é chuva, é sol
Uma fila, um olá
Um retrato, um farol
Que será que será

Vida é um filho que cresce
Uma estrada, um caminho
É um pouco de tudo
É um beijo, um carinho


É um sino tocando, uma Fêmea no cio
É alguém se chegando
É o que ninguém viu
É discurso, é promessa
É um mar, é um rio

Vida é a revolução, é deixar como está

É uma velha canção, Deus nos deu, Deus dará

Vida é a solidão, é a turma do bar
É partir sem razão, é voltar por voltar

Vida é palco é platéia, é cadeira vazia
É rotina, odisséia, é sair de uma fria
É um sonho tão bom, é a briga no altar

Vida!!! É um grito de gol
É um banho de mar
É inverno e verão
Vida!!! É mentira, é verdade
E quem sabe a vida é da vida razão.


Ricardo Garay e Carlos Ludwig

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Natal

Para os meus amigos:



Presente de Natal

O melhor presente de Natal

que você pode oferecer a alguém

é justamente aquele que

você já recebeu:

a vida !

E como presentear ?

Distribuindo alegria,

esperança,

fé em si mesmo,

conforto

e otimismo

para que as pessoas possam

cada vez mais valorizar

a Vida.



Que teu Natal seja com muita Paz e

2011 seja o primeiro de muitos anos de Prosperidade!


Abraço

Silvia

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Em nome do Pai


A mais intrigante passagem da Bíblia, no meu fraco modo de entender, é aquela em que Jesus está pregado na cruz, restam ainda alguns minutos para ele expirar, já lhe faltam as últimas forças e ele exclama num ultimato: “Pai, por que me abandonaste?” É uma frase instigante, curiosa, profundamente enigmática, mas a gente sente que ela é a chave de todo o mistério da divindade e ao mesmo tempo decifradora da origem e papel do homem na Terra.

Mas não foi feita a vontade de Deus ao ser crucificado o Cristo? E Cristo não se submeteu à vontade de Deus, não só se entregando aos seus carrascos como assumindo comportamento subversivo para aquela época, que só podia terminar no patíbulo? Então, se foi a vontade associada de Pai e Filho que foi atendida e materializada no sacrifício no madeiro, por que a frase queixosa e cobradora do Messias?

Mas se era aquele holocausto que o Pai queria, se o Filho se entregava àquele martírio por vontade e destinação, que abandono era esse do Pai para com o Filho que este clamava em seu último instante de vida? Por que o Filho se sentia só, se tinha plena consciência de que se constituía ali no Calvário no instrumento sublime de redenção da humanidade? Como pode se sentir só o Ungido?

Como ousava o Filho acusar o Criador de abandono? Como podia o Filho escolhido assim vacilar em sua fé, atribuindo ao Pai celeste a sua dessorção, abjuração, abjunção, deserdação? “Pai, por que me abandonaste?” Terá Cristo, infernizado pela dor e diante da proximidade da morte, vacilado em sua fé e acreditado por um momento que aquele era mesmo o seu fim e de nada iria valer o sacrifício? Qual o sentido da dramaticamente patética frase avassaladora?

Eu prefiro acreditar que Cristo, misto de homem e Deus, diante da miséria da morte torturada, deixou que se lhe escapasse naquele instante a condição divina e viu-se revestido apenas da essência humana, tendo pronunciado uma frase meramente terrena, compatível com a natureza inferior que lhe restava. Ou então, diante disso, como sentiu-se, em meio ao desespero, despojado da delegação divina, temendo a morte e sentindo irresistível a dor física, cobrou de Deus essa última e decisiva fraqueza, atribuindo a seu Pai aquele derradeiro erro e defeito irreparável: a consciência da solidão.

Todos nós, quando nos sentimos desesperados e sós, conscientemente ou quase sempre inconscientemente, atribuímos esse abandono às nossas mães ou a nossos pais. É freudiano, mas vemos agora que, antes disso, é cristiano, culparmos a nossa mãe ou nosso pai por qualquer infortúnio nosso. O destino de todo o homem é ligado imprescindivelmente à sua origem. E não há jamais como nos libertarmos de nossos pais e desligarmo-nos de nossos filhos.

Paulo Sant'Ana
Zero Hora 21/02/1997

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Mãe


Mãe... São três letras apenas
As desse nome bendito:
Também o Céu tem três letras...
E nelas cabe o infinito.
Para louvar nossa mãe,
Todo o bem que se disse
Nunca há de ser tão grande
Como o bem que ela nos quer...
Palavra tão pequenina,
Bem sabem os lábios meus
Que és do tamanho do Céu
E apenas menor que Deus!

Mario Quintana

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Aurora e crepúsculo


Esses dias, um amigo meu se recusou a ir tomar um cafezinho no bar e fumar um cigarro no fumódromo em minha companhia, alegando que tinha muito que fazer e não podia me dar esse prazer. Eu, então, abandonado, gritei a plenos pulmões aqui na sala: “Como é chato ser dependente de um amigo!”.

Examinando bem a frase que gritei, chegaremos à conclusão de que ela encerra uma grande verdade: a gente se torna refém de todas as pessoas que ama ou que estima.

E tem o outro lado da coisa: quando se estima ou ama outra pessoa, exige-se tudo dela, comer churrasco conosco, fumar no fumódromo conosco, ir até o bar ou bistrô ou cinema conosco, enfim queremos tomar conta do ser amado ou estimado. Eu fiquei fulo da cara quando meu amigo me disse que não podia ir até o fumódromo comigo.
Quando a gente ama ou estima alguém, acha que esse alguém tem de estar sempre à nossa disposição. E não é assim, para a pessoa a quem amamos, somos apenas uma parte de sua vida. Parte importante, mas não única.

Uma vez, soube que no horóscopo chinês os signos são representados por animais. Gêmeos, por exemplo, no horóscopo chinês, é cachorro, Sagitário é cavalo. Um dia, eu encontrei uma mulher casada com um amigo meu que era cavalo no horóscopo chinês.
Essa senhora era muito ciumenta de seu marido, o tal meu amigo. E eu a aconselhava a não ser ciumenta, a não querer prender seu marido dentro de casa, não obrigá-lo a sempre estar ao lado dela.
Olhem o que eu disse a ela:
– É bobagem você querer dominá-lo e tê-lo sempre junto de si. Você tem de fazer exatamente o contrário. Porque ele é cavalo no horóscopo chinês e sabe o que diz o horóscopo chinês para os que são do signo de cavalo? Diz o seguinte: “Se queres prendê-lo, solta-lhe as rédeas”.
Os chineses são sábios, eles sabem que quanto mais você oprimir seu parceiro na relação, mais ele se cansará de você. Solte-o a galopar nas campinas repletas de fêmeas equinas.

Cá para nós, se você tem um marido – ou uma mulher –, se você tem um(a) namorado(a) e sabe que ele vem mantendo alguns namoriscos de pequenas consequências, cá para nós, que ninguém nos ouça, faça que não vê, não dê pelota, deixa ele seguir com seu retoço externo, que em seguida ele cansa e volta para seu remanso.

Não se pode querer tomar conta total de quem se ama ou estima. Pode e deve acarinhá-lo, mas não o sufoque.

Cá para nós, se amamos profundamente alguém, até é bom que esse nosso amor circule pelo mundo e mantenha estreitas relações de amizade com outras pessoas. Quando voltar de suas relações de amizade, será muito mais afetivo e estuante de amor conosco.
E, lembre-se bem, se você ama ou estima alguém, tenha sempre tolerância com ele. A tolerância é fundamental em qualquer relação amorosa ou de amizade. Está totalmente incapacitado para amar ou ser amigo quem não dedica tolerância à pessoa amada ou estimada. A tolerância é a aurora de qualquer relação, a intolerância é o crepúsculo.

Paulo Sant'Ana
Zero Hora 17/10/2009

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A metamorfose


Me tira esse troço.

_ Hein?

_ Esse troço.

_ O um…

_ Isso. O umbigo.

_ Mas como é que a senhora vai ficar sem umbigo?

_ Pra que que serve o umbigo?

_ Bom, o umbig…

_ Pra nada. Nada! Não tem função.

_ Mas, minha senhora, a senhora…

_ Você não é cirurgião plástico?

_ Sim, eu sou, eu…

_ Consegue tirar o meu umbigo?

_ Claro que consigo.

_ Então me tira esse troço.

Estava decidida. Não ia mais se arriscar. Arrancaria o mal pela raiz. Alisaria a barriga. Extirparia não apenas a bolota que se lhe saltara, mas o umbigo inteiro, num zaz.

E assim o fez.

Zaz.

Saiu da mesa de operações sem o umbigo.

Passadas algumas semanas, resolveu estrear o ventre novo na praia. Meteu-se em um biquíni mínimo. Pelo espelho grande do quarto, avaliou a nova aparência. As pernas compridas, que sempre foram seu trunfo, continuavam compridas, macias e firmes. Se há uma coisa que, em geral, se mantém na mulher, são as pernas, e as dela eram pernas de propaganda de creme de depilação, ah eram. Belas pernas.

A bunda ainda não cedera à força da gravidade, resultado de minutos sem fim de exercícios diários para os glúteos na academia. Verdade que aqui e ali surgiam dobras indesejáveis, mas, enfim, o que fazer? Mesmo as meninas mais tenras agora apresentavam celulite e algumas até, o horror!, estrias. Muito ketchup, só podia ser.

Os seios também resistiam com bravura, dois valentes soldados postados de vigília em frente ao forte. Ela já havia decidido que, quando desabassem, colocaria silicone sem o menor dó. Teria seios redondos e empinados, os homens a olhariam e a chamariam de vaca de divinas tetas. Mas ainda não chegara a hora. Os seios continuavam em estado satisfatório, embora tivessem uma coisinha de que ela não gostava: um olhava para um lado, outro para o outro. Isso a irritava. Mas, quando colocasse silicone, corrigiria esse defeito também.

Finalmente, ela examinou a barriga.

Lisa.

Perfeita.

Sem umbigo.

Sorriu. Amarrou uma canga à cintura.

E marchou em direção ao mar marulhante.

Não demorou a acontecer. Mal pisou na areia, reparou que os homens a observavam com gula. Mas não foram eles, foi uma mulher quem notou. Uma magricela de cabelo vermelho. Ela viu quando a mulher apontou diretamente para onde devia existir umbigo em sua barriga, num gesto que tentava ser discreto. Logo, a turma da mulher de cabelo vermelho enviava olhares para a sua barriga. Em alguns minutos, todo um naco da praia passava diante dela e esticava o olhar para seu ex-umbigo. Houve uma mudança no ambiente, ela sentiu que havia uma agitação, um murmurinho, uma excitação inusual provocada… pelo seu umbigo. Ou pela falta dele.

Suportou aquilo por alguns minutos, tentou não se abalar. Mas no momento em que as crianças se acercaram dela, no momento em que riram e a chamaram de A Mulher Sem Umbigo, então ela passou a se achar uma anomalia, um ser de outro planeta, uma pária. Levantou-se da toalha, protegeu o corpo com a canga e foi-se embora, ouvindo, ao longe, as gargalhadas do povo cruel, que repetia “sem umbigo, sem umbigo, sem umbigo…”

É assim que é. As pessoas não aceitam o diferente. Não aceitam o novo. Ela nunca mais foi à praia. Ela rejeita todos os homens. Como poderia se despir diante de um, se sabia que ele iria rir, ou, pior, falhar nas lides do amor devido à sua… deformidade?

Ela se enclausurou. Ela se tornou amarga. Ela passa os dias a sofrer. Porque, ao contrário de todas as pessoas da Humanidade em todos os tempos, bilhões e bilhões de seres humanos em milhões e milhões de anos, ela é uma mulher sem umbigo. A única e triste mulher sem umbigo.


domingo, 12 de dezembro de 2010

Acorrentados


Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga;
quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de 10 minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos líquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieroglífo da existência; quem não se acanha de achar o por do sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz
ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.



Paulo Mendes Campos

Canções

Se não houvesse montanhas!
Se não houvesse paredes!
Se o sonho tecesse malhas
e os braços colhessem redes!

Se a noite e o dia passassem
como nuvens, sem cadeias,
e os instantes da memória
fossem vento nas areias!

Se não houvesse saudade,
solidão nem despedida ...
Se a vida inteira não fosse,
além de breve, perdida!

Eu tinha um cavalo de asas,
que morreu sem ter pascigo.
E em labirintos se movem
os fantasmas que persigo.

Cecília Meireles

sábado, 11 de dezembro de 2010

Consoada


Quando a Indesejada das gentes chegar

(Não sei se dura ou caroável).

Talvez eu tenha medo.

Talvez sorria ou diga:

-Alô, iniludível!

O meu dia foi bom, pode a noite descer.

(A noite com seus sortilégios.)

Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,

A mesa posta,

Com cada coisa em seu lugar.


Manuel Bandeira

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Flechas contra o muro


Pra se poder viver

compra-se o mundo em que

se vive.

Como quem compra um objeto

secreto, mas visível.

Compram-se os seus problemas

sem solução.

Quem nasce no mundo de hoje,

compra, sem o querer,

uma pomba.

Com um alfinete feérico

na cabeça.


Uma pomba extremamente vizinha

de bomba.

Uma e outra têm asas.

Uma e outra são limpas.

Ambas são irmãs pelo som.

Um simples equívoco

de fonemas ou de telefonemas

entre os dois hemisférios

uma troca de p por b

e o mundo explodirá

em nossa mão

(p) bomba.


Cassiano Ricardo

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Reis Magos


E para ouvir sua história

vieram três reis encantados:

um vermelho, o que lhe trouxe

a manhã como presente;

outro branco, o que lhe havia

feito presente do dia;

outro preto, finalmente,

rosto cortado de açoite,

O que lhe trouxera a Noite ...


Cassiano Ricardo

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A hora do cansaço


As coisas que amamos,

as pessoas que amamos

são eternas até certo ponto.

Duram o infinito variável

no limite do nosso poder

de respirar a eternidade.


Pensá-las é pensar que não acabam nunca,

dar-lhes moldura de granito.

De outra matéria se tornam, absoluta,

numa outra (maior) realidade.


Começam a esmaecer quando nos cansamos,

e todos nós cansamos, por um ou outro itinerário,

de aspirar a resina do eterno.

Já não pretendemos que sejam imperecíveis.

Restituimos cada ser e coisa à condição precária,

rebaixamos o amor ao estado de inutilidade.


Do sonho de eterno fica esse gosto acre

na boca, na mente,sei lá, talvez no ar.


Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Amantes


Os dois amantes sentados num banco
Já se cansaram, nem se olham mais,
Esgotando os beijos e os abraços.

Pensaram um dia que o carinho fosse eterno:
Estão ligados somente pela falta de assunto
E pelo murmúrio das ondas
A luz da tarde é febril.
E triste o final do amor.

Murilo Mendes

domingo, 5 de dezembro de 2010

Desejo que desejes


Eu desejo que desejes ser feliz de um modo possível e rápido,desejo que desejes uma via expressa rumo a realizações não-utópicas, mas viáveis, que desejes coisas simples como um suco gelado depois de correr ou um abraço ao chegar em casa, desejo que desejes com discernimento e com alvos bem-mirados.

Mas desejo também que desejes com audácia,que desejes uns sonhos descabidos e que ao sabê-los impossíveis não os leve em grande consideração, mas os mantenha acesos, livres de frustação, desejes com fantasia e atrevimento, estando alerta para as casualidades e os milagres, para o imponderável da vida, onde os desejos secretos são atendidos.

Desejo que desejes trabalhar melhor, que desejes amar com menos amarras, que desejes parar de fumar, que desejes viajar para bem longe e desejes voltar para o teu canto, desejo que desejes crescer e que desejes o choro e o silêncio, através deles somos puxados para dentro, eu desejo que desejes ter a coragem de se enxergar mais nitidamente.

Mas desejo também que desejes uma alegria incontida, que desejes mais amigos, e nem precisam ser melhores amigos, basta que sejam bons parceiros de esporte e de mesas de bar, que desejes o bar tanto quanto a igreja, mas que o desejo pelo encontro seja sincero, que desejes escutar as histórias dos outros, que desejes acreditar nelas e desacreditar também - faz parte este ir-e-vir de incertezas-, que desejes não ter tantos desejos concretos, que o desejo maior seja a convivência pacífica com os outros que desejam outras coisas.

Desejo que desejes alguma mudança, uma mudança que seja necessária e que ela não te pese na alma ; mudanças são temidas, mas não há outro combustível para essa travessia. Desejo que desejes um ano inteiro de muitos meses bem fechados, que nada fique por fazer, e desejo, principalmente, que desejes desejar, que te permitas desejar, pois o desejo é vigoroso e gratuito, o desejo é inocente, não reprime teus pedidos ocultos, desejo que desejes vitórias, romances, diagnósticos favoráveis, aplausos, mais dinheiro e sentimentos vários, mas desejo antes de tudo que desejes, simplesmente.


Martha Medeiros

terça-feira, 30 de novembro de 2010

O pintor


O pintor com o seu pincel

não sabe que tinta é essa

que sai direto do coração

e vai pintanto terra e céu.


Pinta mares e montanhas

o homem e seus mistérios,

o amor com seus novelos

encruzilhadas e gorassóis.


Então, quando o dia acaba,

inventa uma cama macia,

e dentro dos sonhos,

vagarosamente, eternamente,

ele pinta.


Roseana Murray

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Pássaro livre


Gaiola aberta.
Aberta a janela.
O pássaro desperta.
A vida é bela.

A vida é bela.
A vida é boa.

Voa, pássaro, voa.

Sidónio Muralha

domingo, 28 de novembro de 2010

A cachorrinha



Mas que amor de cachorrinha!
Mas que amor de cachorrinha!
Pode haver coisa no mundo
Mais branca, mais bonitinha
Do que a tua barriguinha
Crivada de mamiquinha?
Pode haver coisa no mundo
Mais travessa, mais tontinha
Que esse amor de cachorrinha
Quando vem fazer festinha
Remexendo a traseirinha?

Vinícius De Moraes

A chuva nos cabelos

Imagem
A chuva molhava os seus cabelos,
A chuva descia sobre os seus cabelos
Voluptuosamente.
A chuva chorava sobre os seus cabelos,
Macios,
A chuva penetrava nos seus cabelos,
Profundamente,
Até as raízes!

Ela era uma árvore,
Uma árvore molhada
E coberta de flores .


Augusto Frederico Schmidt

sábado, 27 de novembro de 2010

Amor


Amor, então,
também, acaba?


Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.

Ou em rima.

Paulo Leminski

Metade pássaro


A mulher do fim do mundo

Dá de comer às roseiras,

Dá de beber às estátuas,

Dá de sonhar aos poetas.


A mulher do fim do mundo

Chama a luz com um assobio,

Faz a virgem virar pedra,

Cura a tempestade,

Desvia o curso dos sonhos,

Escreve cartas ao rio,

Me puxa do sono eterno

Para os seus braços que cantam.


Murilo Mendes

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O melhor amigo


Esse meu amigo tinha um cachorro. Não era cachorro de raça nem nada. Não passava de um vira-latinha malhado, o corpo todo manchado de preto e branco, a cara preta, só a ponta do focinho branca, assim como o contorno dos olhos. Parecia que usava óculos, aquele guaipequinha.

Meu amigo encontrou o cachorro na rua, ainda filhote. Afeiçoou-se a ele e levou-o para casa. Conviviam havia já mais de dois anos em seu pequeno apartamento. O cachorrinho era relativamente obediente e espaçosamente alegre, como em geral são os cachorrinhos.

Um dia, meu amigo encontrou uma namorada nas lides noturnas. Afeiçoou-se a ela e levou-a para casa também. Passaram a viver juntos, os três.

A mulher, porém, não gostava do cachorro. O apartamento ficava com cheiro de bicho e cheio de pelo, os latidos a incomodavam. Essas coisas que mulheres dizem de cachorros. Passaram-se meses, ela sempre reclamando, meu amigo sempre evitando o assunto. Adiando a solução. Quando o cachorrinho roeu as tiras da sandália preferida dela, ela deu um ultimato: ou ele ou eu!

Mais tarde, meu amigo confessou que, naquela hora, vacilou. Ela ou ele? Ela? Ou ele? Mas a disputa era entre um animal e um ser humano. Nesses casos, o humano quase sempre sai ganhando.

Ela ganhou.

Uma manhã, meu amigo, com o peito confrangido, o coração do tamanho de uma ervilha, a alma pesada, meu amigo colocou o cachorrinho no carro. Teria de livrar-se dele. O cachorrinho estava feliz. Gostava de passear de carro. Meteu o focinho branco para fora da janela e ficou sentindo os odores que passavam pela rua, sentindo o vento bater na cara preta e branca.

Meu amigo dirigiu até Canoas. Enveredou pelos bairros da cidade. Parou em um descampado. Desceu. Deu a volta no carro. Abriu a porta do carona. O cachorrinho pulou para fora, o rabo abanando, faceiro com a atenção que o dono lhe despendia. Meu amigo caminhou uns 30 metros. O cachorrinho o seguiu, como sempre. Meu amigo olhou para ele, pesaroso.

– Senta! – ordenou.

Ele obedeceu.

– Fica aí!

Ele obedeceu outra vez.

O cachorrinho ficou parado, enquanto ele voltava para o carro. Sentou-se atrás do volante. Arrancou. Antes de engatar a segunda marcha, parou. Olhou para trás. Viu, nos olhos do cachorrinho, a compreensão conformada, a lealdade triste. Os olhos do cachorrinho mostravam que ele sabia que seria traído. Que seria abandonado.

Como foi.

Meu amigo dirigiu uma quadra pensando naquele olhar. Então, num repente, se arrependeu. Pisou no freio. Fez o retorno, apressado. Voltou num tzin para seu companheiro. Ansiava por abraçá-lo e afagá-lo, por dar-lhe um osso novo, por pedir desculpas.

Mas não o encontrou mais. Rodou por mais de duas horas pelas imediações, e nada. Voltou para casa abatido, desencantado da vida. Até hoje ele lembra daquele olhar desapontado. Daquele olhar que expressava amizade, fidelidade e um coração partido. Até hoje ele sonha com seu cachorrinho.

A mulher continua morando no apartamento.

David Coimbra

Zero Hora 26/11/2010

Os homens vendem a luz


e profanam

vendem água

e se enganam


porque a vida

Deua deu de graça

no seu estado natural


os homens querem vender o sol

e serem donos da lua


fincam uma bandeira nacionalista

lá na lua

que sempre foi dos namorados


os namorados conquistaram a lua

com suas carícias e beijos

e juras de amor


a lua é dos namorados de

todas as nacionalidades.


Chico Bezerra

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Bumerangue


bola

branca

vai

ping

pong

vem

branca

bola


Chacal

Seiscentos e sessenta e seis



A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.


Quando se vê, já são seis horas: há tempo ..


Quando se vê, já é sexta-feira ...


Quando se vê, passaram 60 anos ...




Agora e tarde demais para ser reprovado ...


E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,


eu nem olhava o relógio


seguia sempre, sempre em frente ...


E iria jogando pelo


{caminho a casca


{dourada e inútil das


{horas ...




Mario Quintana

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Os quereres




Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão

Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde o queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói

Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és

Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock?n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em ti é em mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente impessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há, e do que não há em mim


Caetano Veloso

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A droga


A droga

te levaa às nuvens

e te deita na lama.


Promete asas

e põe algemas.


A droga

convoca ao mergulho

e te arrasta na correnteza.


Fecha a porta

de tua casa

e te leva ao exílio.


A droga

confere

o êxtase no caos

e depois te rouba de ti mesmo.


A droga

te filia

ao partido dos derrotados

e à seita

dos náufragos.


A droga

profana o corpo

e marginaliza a alma.


Proclama que és livre

e te ata à soga.


Sente o aroma das frutas.

O veludo da pele.

O milagre das estações.


E diz nâo às drogas.

E não deixa ela passar nem

sequer pela casa de teu corpo.


Luiz Coronel

sábado, 20 de novembro de 2010

O último poema


Assim eu quereria meu último poema

Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais

Que fosse ardente como um soluço sem lágrima

Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume

A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos

A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.


Manuel Bandeira

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Pré-história


Mamãe vestida de rendas

Tocava piano no caos.


Uma noite abriu as asas

Cansada de tantos som,

Equilibrou-se no azul,

De tonta não mais olhou

Para mim, para ninguém:

Cai no álbum de retratos.

Murilo Mendes

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Política literária


O poeta municipal

discute com o poeta estadual

qual deles é capaz de bater o poeta federal.


Enquanto isso o poeta federal

tira ouro do nariz.


Carlos Drummond de Andrade

Mar portuguez



Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!


Por te cruzarmos, quantas mães choraram,


Quantos filhos em vão rezaram!


Quantas noivas ficaram sem casar


Para que fosses nosso, ó mar!




Valeu a pena? Tudo vale a pena


Se a alma não é pequena.


Quem quer passar além do Bojador


Tem que passar além da dor.


Deus ao mar o perigo e o abismo eu,


Ma nele é que espelhou o céu.




Fernando Passoa




segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Canção do amigo


Quando digo

a palavra amigo,

minha alma abre os postigos.


Amigo é um código

sem artigos.


Amigo não chega

na hora da colheita.

Vem plantar o trigo.


Amigo que é amigo

desafia as leis do tempo

e do espaço.


Viaja no vento,

e longe está contigo.


E sua presença é doce

como os figos.


Amigo

conhece as confidências

do silêncio.


Ao seu lado

não há maus presságios,

ou perigos.



O mundo não pode

te ferir ou magoar,

pois tens um amigo.


E o seu abraço

é um abrigo.


Luiz Coronel

sábado, 13 de novembro de 2010

Filhos



Seus filhos não são seus filhos.
São os filhos e as filhas
dos desejos que a vida
tem de si mesma .

Vêm através de vocês,

mas não são de vocês

e, ainda que vivam com vocês,

não lhes pertencem.

Podem abrigar seus corpos,
mas não suas almas,

porque suas almas
moram na casa do amanhã,
que nem mesmo em sonhos

lhes será permitido visitar.

Podem empenhar-se

para ser como eles,

mas não tentem fazer como vocês fizeram,

porque a vida não anda para trás,

nem se detém no ontem.

Vocês são o arco

por meio do qual

seus filhos são disparados

como flechas vivas.

O arqueiro vê o alvo s

obre o caminho do infinito
e dobra o arco com toda a força,

a fim de que suas flechas partam velozes

e para muito longe.

Que o fato de estarem

nas mãos do arqueiro

seja para suas felicidades,

porque, assim como ele ama a flecha que dispara,

ama também o arco que permanece firme

Por isto vocês tiveram a liberdade de amar
e a oportunidade de viver e fazerem suas vidas.


Deixem que seus filhos voem sós de seus ninhos

quando chegar a hora

e não lhes reclamem

para que voltem.

Eles os quererão para sempre
e terão também seus lares,
nos quais, algum dia, ficarão sós,
porém terão sido seus lares e suas vidas.


Deixem-nos livres.

Amem-nos com liberdade,
não apaguem o fogo de suas vidas.
Vivam e deixem viver,
assim eles os quererão sempre.

Gibran Kahlil Gibran

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Amores apertados


Sabe aqueles banheiros mínimos, que quando um entra o outro tem que sair? Tem amores que parecem um banheiro apertado: só cabe um.

Ela ama o cara. Interessa-se pela sua vida, seu trabalho, seus estudos, seu esporte, seus amigos, sua família, enfim, ela está inteira na dele.
Ele, por sua vez, recebe isso de muito bom grado mas não retribui.
Não pergunta pelo trabalho dela, pelas angústias dela, por nada que lhe diga respeito.

Ela, obviamente, não gosta desta situação, mas vai levando, levando, levando, até que um belo dia sua paciência se esgota e ela tira o time de campo. Aí ele entra.
De repente, como num passe de mágica, ele se dá conta de como ela é legal, de como ele tem sido distante, de como vai ser duro ficar sem a sua menina.
Então ele a torpedeia com e-mails e telefonemas carinhosos.

Mas ela é gata escaldada, não vai entrar nessa de novo.
Ele insiste. Quer vê-la, quer que ela entenda que ele é desse jeito tosco mesmo, mas que no fundo ela é a mulher da vida dele.
Ela é gata escaldada mas não é de gelo: então tá, vamos tentar de novo.
Ela entra com tudo.
Com a namorada resgatada, ele se isola novamente em seu próprio mundo, deixando-a conduzir tudo sozinha.
É ela quem o procura, é ela que o elogia, é ela que arma os programas, é ela que lembra das datas, é ela, tudo ela, só ela.

Quer saber: tô fora!
Aí ele entra. Pô, gata, prometo, juro, ó: vou cobrir você de carinho.
E não é que ele cumpre?

Passa a tratá-la como uma deusa, super-atencioso, parece outro homem.
Ela aceita a deferência, mas não entra mais nesse jogo. Simplesmente não retribui o afeto dele, quase nunca telefona, sai com as amigas toda hora, e ele ali, no maior esforço.
Ela esnobando, ele tentando, ela se fazendo, ele se declarando. Até que ele enche: tô fora.
Aí ela entra. E ele esfria, e ela cai fora, e ele volta, e seguem neste entra-e-sai até o desgaste total.

Bom mesmo é amor em que cabem os dois juntos.

Martha Medeiros

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

As minhas mãos


Para que vos quero, para que me servis, minhas mãos, se já não posso tocar convosco nem mais uma ilusão ou sonho?

Tristes mãos minhas, que não mais acariciam nem possuem mais a coragem de colher uma flor!

Mãos já incapazes de empunhar uma bandeira, sequer de afagar um cão.

Para que servis, minhas mãos, que antes tantas obras forjastes? Hoje mal que tremulamente ofereceis uma esmola.

Ainda bem que nunca se tingiram de sangue nem jamais se entregaram ao ócio. O que no entanto exijo de vós, mãos minhas, é que desmascareis os hipócritas e surreis os impostores.

Tanto estou a desconfiar de vós, minhas mãos enfastiadas, que temo que estejais dispostas eventualmente a dar tapinhas nas costas dos poderosos iníquos.

Para que servis hoje, minhas mãos decagonais, senão para arroubos de lascívia?

Temo até que deixastes, minhas mãos, de ser esperançosas nos vossos acenos de adeus.

Mãos caídas, impotentes já para esplêndidos gestos de aceite ou de recusa.


Vós vos finastes, minhas mãos. Talvez até para os abraços sinceros. Nunca mais vos atrevestes à poesia dos empurrões e das mãos dadas nas rodas de ciranda do colégio infantil.

Se só me servis para escrever, é escassa vossa serventia: eu precisaria de vós, minhas mãos, mais do que para ideias, precisaria para grandes atitudes. Como a de, por exemplo, enfrentar o poder nas mãos dos maus.

Mãos arrasadas perto do que fostes, decepcionantes perto do que prometíeis.

Olho para minhas mãos e não acredito que elas existam, como se me restasse ser uma Vênus de Milo.

Fito minhas mãos e vejo que nada mais cresce nelas, exceto minhas unhas.

Reagi, mãos minhas! Talvez ainda hoje haja tempo para grandes obras.

Atirai para longe – depressa que o tempo é curto – este destino de desencantos e amargores.

Talvez ainda haja ensejo, minhas mãos, para mudar o que pode ser transformado.

Livrai-vos, minhas mãos, dos entraves das vossas luvas, que vos tiram a força, o jeito e a impetuosidade, além de tornarem vossos dedos insensíveis.

Cruzai os teus dedos e que este enlace de oração vos leve novamente a produzir carinho e cuidados nas crianças e no ideal, além de estapear as desonras.

Mãos em que um dia depositei toda minha esperança e fé, voltai depressa a ser desprendidas, corajosas e realizadoras.

Livrai-vos dessa paralisia e dessas impurezas e tentai como antes, mais uma vez, vos agarrar à cauda luminosa do cometa do otimismo.

Paulo Sant'Ana

ZH 31/08/2010

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A avó

A avó, que tem oitenta anos,

Está tão fraca e velhinha! . . .

Teve tantos desenganos!

Ficou branquinha, branquinha,

Com os desgostos humanos.

Hoje, na sua cadeira,

Repousa, pálida e fria,

Depois de tanta canseira:

E cochila todo o dia,

E cochila a noite inteira.

Às vezes, porém, o bando

Dos netos invade a sala . . .

Entram rindo e papagueando:

Este briga, aquele fala,

Aquele dança, pulando . . .

A velha acorda sorrindo,

E a alegria a transfigura;

Seu rosto fica mais lindo,

Vendo tanta travessura,

E tanto barulho ouvindo.

Chama os netos adorados,

Beija-os, e, tremulamente,

Passa os dedos engelhados,

Lentamente, lentamente,

Por seus cabelos, doirados.


Fica mais moça, e palpita,

E recupera a memória,

Quando um dos netinhos grita:

"Ó vovó! conte uma história!

Conte uma história bonita!"


Então, com frases pausadas,

Conta historias de quimeras,

Em que há palácios de fadas,

E feiticeiras, e feras,

E princesas encantadas . . .

E os netinhos estremecem,

Os contos acompanhando,

E as travessuras esquecem,

— Até que, a fronte inclinando

Sobre o seu colo, adormecem . . .


Olavo Bilac

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Os ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.


E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.


Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.


Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


Carlos Drummond de Andrade

domingo, 7 de novembro de 2010

A última que morre


Sem querer ofender ninguém: a esperança ficou obsoleta

Atualmente, há tanta informação para digerir que não sobra espaço na cabeça para questionar ditados já consagrados. Então, seguimos repetindo, dia após dia, frases que nos parecem definitivas, como A esperança é a última que morre, sem nos darmos conta de que elas não são definitivas coisa nenhuma. Por que manter um estado de ilusão eterno? Em certas circunstâncias, é muito bom perder a esperança.

Esperança não transforma o mundo. Não muda a sua vida. Apenas oferece um breve conforto, faz de conta que as coisas se arranjarão sozinhas através do pensamento positivo. Mas uma coisa é confiar em bons prognósticos, mentalizar situações agradáveis, e outra bem diferente é ficar esperando milagres. Sem querer ofender ninguém: a esperança se tornou obsoleta.

Você tem esperança de quê? De um mundo melhor, de um país mais justo? Ainda? Ok, gostaríamos que as coisas fossem diferentes, mas a diferença só se efetiva por meio de ações e reações. Quando você tem esperança, tudo o que precisa fazer é ficar sentado aguardando. Já quando ela morre, acaba a morosidade. Você vira a página, troca de capítulo, vai batalhar por outra coisa. Alguém que cansou de esperar é sempre mais produtivo.

Dificilmente analisamos as desistências por um foco salutar. Elas podem ser o combustível para o início de outro projeto, de um desejo novo. Nem tudo nasceu para dar certo. Algumas coisas são tortas por natureza, são boas uns 25%, e os outros 75% não tem pai-nosso que dê jeito. Ficar paralisado diante de algo que nunca vai mudar é estratégia de preguiçoso. Diante do que não muda, só há uma coisa a fazer: mudar a si mesmo, sacrificando as suas antigas e boas intenções.

Ter esperança de um mundo melhor é um sentimento megalômano. Desista de pensar no mundo, não seja tão ambicioso. Ele nunca vai ser muito melhor do que é, mas seu prédio pode ser, o seu local de trabalho pode ser, já que microcosmos não funcionam à base de esperança, e sim de realizações.

Não que eu proponha radicalizar. A gente pode ter um pouquinho de esperança, claro, desde que ela tenha um prazo de validade, não se transforme numa acomodação vitalícia. Tenha esperança até a página 15. Se a história não avança, não é preciso morrer decrépito segurando o mesmo livro na mão. Ele vai continuar chato, vai continuar engessando você.

O desejo é que deve ser o último a morrer. Ele, sim, merece o prestígio que a esperança, essa velha senhora, ainda pensa que tem.


Martha Medeiros
Zero Hora 31/10/2010