quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Como surgiram as sílabas




Pense no pato.

Pato.

Pato, pato, pato.

Agora imagine que você é um sumério vivendo há 5.500 anos sem saber como escrever pato, porque nunca ninguém havia escrito pato antes, mas TENDO que escrever pato para, digamos, registrar a venda de patos para um amorita que adora comer pato, como ele gosta de pato, esse maldito amorita.

O que fazer?

Bem, você sabe, de ouvido, que pato é pá + tô. É assim que se fala pato:

_ Pa… to.

“Pá” você sabe como escrever: é o desenho de uma pá, a ferramenta, coisa fácil. É isso que lhe dá a ideia de usar o desenho que representa uma pá para simbolizar a metade da palavra pato. Agora você só precisa imaginar um símbolo para tô. Embora a gramática ainda não tenha sido inventada, você se lembra da contração da primeira pessoa do singular do verbo estar conjugado no presente do indicativo, “estou”, que é, exatamente, “tô”. Aí você desenha algo que simboliza “to”. Pode ser qualquer coisa. Um quadrado, digamos. Pronto: você já pode escrever “pato” unindo os desenhos que significam uma pá e eu estou. Se você inverter a posição dos símbolos, escreverá “topa”. E se você quiser escrever “torre” já terá a primeira sílaba pronta, o “to”, faltando criar um desenho para “re”. Criado esse símbolo, você também poderá escrever “reto” e “pare”.

Você, meu caro sumério, acabou de inventar a escrita.

Pois foi seguindo mais ou menos esse raciocínio que os sumérios transformaram a escrita cuneiforme, que tinha um desenho para cada coisa ou sentimento, em uma escrita que representava as sílabas. Quer dizer: foi assim que os sumérios inventaram a escrita FONÉTICA.

Foi um invento genial, um grande avanço para a humanidade, porque existem muito mais coisas e sentimentos do que sílabas. Com algumas sílabas você registra tudo o que há sobre a terra e sob o sol. Supimpa, não é?

Ouié, mas os sumérios não chegaram à sofisticação de inventar as letras, o que seria ainda mais genial, porque com apenas e tão-somente e nada mais do que 23 letras você escreve TUDO o que existe sobre a terra e sob o sol. Pare agora e reflita sobre isso: 23 e três símbolos, combinados, representam TUDO.

Parece muito simples para você, alfabetizado desde criancinha. É que tudo parece simples depois de ter sido criado. O ser humano, para chegar à primeira forma de escrita, a cuneiforme, levou milhares de anos. Milhões, até: os pictogramas sumérios foram concebidos por volta de 8 mil anos antes de Cristo. Lentamente, a escrita cuneiforme foi sendo aperfeiçoada, até evoluir para a silábica. Isso se deu há uns 5.500 anos. A partir daí, o homem levaria outros dois mil anos até inventar o alfabeto, glória que coube aos criativos fenícios.

Até que essa façanha fosse realizada, no entanto, o ato de ler & escrever demandou comovente esforço por parte dos jovens do mundo antigo. Para tanto, os sumérios instituíram a primeira escola formal do mundo, chamada “edubba”, ou “casa das placas”. Isso porque a escrita cuneiforme se dava em placas de argila, material abundante nas margens dos dadivosos rios Tigre e Eufrates. A edubba era um anexo do templo ou do palácio real. Os professores eram mantidos por elevadas taxas pagas pelos pais dos alunos, todos de famílias de posses. O método de ensino era implacável. Os meninos, e só os meninos, nunca as meninas, eles ingressavam na escola na primeira infância e dela só saíam adultos. Tinham de memorizar centenas de sinais e podiam ser castigados com dureza à menor falta, como falar sem permissão, perambular pela rua ou não ter habilidade suficiente para desenhar o símbolo indicado pelo mestre.

Em 2.000 antes de Cristo, um desses alunos vacilantes cansou-se de apanhar e apelou para a influência paterna. O velho acedeu. Convidou o professor para que o visitasse em sua casa.

Um texto de 40 séculos de idade conta o que se passou então:

“O professor foi trazido da escola e, ao entrar na casa, fizeram com que se sentasse no lugar de honra. O escolar cuidou dele e o serviu, e tudo o que havia aprendido da arte da escrita em placas ele revelou para o seu pai”.

Em seguida, o pai, vestindo o professor com “um traje novo”, pôs um valioso anel em sua mão. O professor encantou-se de tal maneira com a generosidade da família que de pronto esqueceu o que o levara a castigar o aluno.

_ Você realizou muito bem as atividades escolares _ disse ao rapaz. _ Você se tornou um homem sábio… Isso há quatro mil anos. Como se vê, a corrupção não foi inventada no Brasil. Como já dizia o Eclesiastes, não há nada de novo debaixo do sol.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Viver




Quem nunca quis morrer
Não sabe o que é viver
Não sabe que viver é abrir uma janela
E pássaros pássaros sairão por ela
E hipocampos fosforescentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar... Ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar...
e voar...
cada vez para mais alto
Como depois de se morrer!




Mario Quintana

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Vida




Vida

Vida é chuva, é sol
Uma fila, um olá
Um retrato, um farol
Que será que será

Vida é um filho que cresce
Uma estrada, um caminho
É um pouco de tudo
É um beijo, um carinho


É um sino tocando, uma Fêmea no cio
É alguém se chegando
É o que ninguém viu
É discurso, é promessa
É um mar, é um rio

Vida é a revolução, é deixar como está

É uma velha canção, Deus nos deu, Deus dará

Vida é a solidão, é a turma do bar
É partir sem razão, é voltar por voltar

Vida é palco é platéia, é cadeira vazia
É rotina, odisséia, é sair de uma fria
É um sonho tão bom, é a briga no altar

Vida!!! É um grito de gol
É um banho de mar
É inverno e verão
Vida!!! É mentira, é verdade
E quem sabe a vida é da vida razão.


Ricardo Garay e Carlos Ludwig

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Natal

Para os meus amigos:



Presente de Natal

O melhor presente de Natal

que você pode oferecer a alguém

é justamente aquele que

você já recebeu:

a vida !

E como presentear ?

Distribuindo alegria,

esperança,

fé em si mesmo,

conforto

e otimismo

para que as pessoas possam

cada vez mais valorizar

a Vida.



Que teu Natal seja com muita Paz e

2011 seja o primeiro de muitos anos de Prosperidade!


Abraço

Silvia

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Em nome do Pai


A mais intrigante passagem da Bíblia, no meu fraco modo de entender, é aquela em que Jesus está pregado na cruz, restam ainda alguns minutos para ele expirar, já lhe faltam as últimas forças e ele exclama num ultimato: “Pai, por que me abandonaste?” É uma frase instigante, curiosa, profundamente enigmática, mas a gente sente que ela é a chave de todo o mistério da divindade e ao mesmo tempo decifradora da origem e papel do homem na Terra.

Mas não foi feita a vontade de Deus ao ser crucificado o Cristo? E Cristo não se submeteu à vontade de Deus, não só se entregando aos seus carrascos como assumindo comportamento subversivo para aquela época, que só podia terminar no patíbulo? Então, se foi a vontade associada de Pai e Filho que foi atendida e materializada no sacrifício no madeiro, por que a frase queixosa e cobradora do Messias?

Mas se era aquele holocausto que o Pai queria, se o Filho se entregava àquele martírio por vontade e destinação, que abandono era esse do Pai para com o Filho que este clamava em seu último instante de vida? Por que o Filho se sentia só, se tinha plena consciência de que se constituía ali no Calvário no instrumento sublime de redenção da humanidade? Como pode se sentir só o Ungido?

Como ousava o Filho acusar o Criador de abandono? Como podia o Filho escolhido assim vacilar em sua fé, atribuindo ao Pai celeste a sua dessorção, abjuração, abjunção, deserdação? “Pai, por que me abandonaste?” Terá Cristo, infernizado pela dor e diante da proximidade da morte, vacilado em sua fé e acreditado por um momento que aquele era mesmo o seu fim e de nada iria valer o sacrifício? Qual o sentido da dramaticamente patética frase avassaladora?

Eu prefiro acreditar que Cristo, misto de homem e Deus, diante da miséria da morte torturada, deixou que se lhe escapasse naquele instante a condição divina e viu-se revestido apenas da essência humana, tendo pronunciado uma frase meramente terrena, compatível com a natureza inferior que lhe restava. Ou então, diante disso, como sentiu-se, em meio ao desespero, despojado da delegação divina, temendo a morte e sentindo irresistível a dor física, cobrou de Deus essa última e decisiva fraqueza, atribuindo a seu Pai aquele derradeiro erro e defeito irreparável: a consciência da solidão.

Todos nós, quando nos sentimos desesperados e sós, conscientemente ou quase sempre inconscientemente, atribuímos esse abandono às nossas mães ou a nossos pais. É freudiano, mas vemos agora que, antes disso, é cristiano, culparmos a nossa mãe ou nosso pai por qualquer infortúnio nosso. O destino de todo o homem é ligado imprescindivelmente à sua origem. E não há jamais como nos libertarmos de nossos pais e desligarmo-nos de nossos filhos.

Paulo Sant'Ana
Zero Hora 21/02/1997

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Mãe


Mãe... São três letras apenas
As desse nome bendito:
Também o Céu tem três letras...
E nelas cabe o infinito.
Para louvar nossa mãe,
Todo o bem que se disse
Nunca há de ser tão grande
Como o bem que ela nos quer...
Palavra tão pequenina,
Bem sabem os lábios meus
Que és do tamanho do Céu
E apenas menor que Deus!

Mario Quintana

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Aurora e crepúsculo


Esses dias, um amigo meu se recusou a ir tomar um cafezinho no bar e fumar um cigarro no fumódromo em minha companhia, alegando que tinha muito que fazer e não podia me dar esse prazer. Eu, então, abandonado, gritei a plenos pulmões aqui na sala: “Como é chato ser dependente de um amigo!”.

Examinando bem a frase que gritei, chegaremos à conclusão de que ela encerra uma grande verdade: a gente se torna refém de todas as pessoas que ama ou que estima.

E tem o outro lado da coisa: quando se estima ou ama outra pessoa, exige-se tudo dela, comer churrasco conosco, fumar no fumódromo conosco, ir até o bar ou bistrô ou cinema conosco, enfim queremos tomar conta do ser amado ou estimado. Eu fiquei fulo da cara quando meu amigo me disse que não podia ir até o fumódromo comigo.
Quando a gente ama ou estima alguém, acha que esse alguém tem de estar sempre à nossa disposição. E não é assim, para a pessoa a quem amamos, somos apenas uma parte de sua vida. Parte importante, mas não única.

Uma vez, soube que no horóscopo chinês os signos são representados por animais. Gêmeos, por exemplo, no horóscopo chinês, é cachorro, Sagitário é cavalo. Um dia, eu encontrei uma mulher casada com um amigo meu que era cavalo no horóscopo chinês.
Essa senhora era muito ciumenta de seu marido, o tal meu amigo. E eu a aconselhava a não ser ciumenta, a não querer prender seu marido dentro de casa, não obrigá-lo a sempre estar ao lado dela.
Olhem o que eu disse a ela:
– É bobagem você querer dominá-lo e tê-lo sempre junto de si. Você tem de fazer exatamente o contrário. Porque ele é cavalo no horóscopo chinês e sabe o que diz o horóscopo chinês para os que são do signo de cavalo? Diz o seguinte: “Se queres prendê-lo, solta-lhe as rédeas”.
Os chineses são sábios, eles sabem que quanto mais você oprimir seu parceiro na relação, mais ele se cansará de você. Solte-o a galopar nas campinas repletas de fêmeas equinas.

Cá para nós, se você tem um marido – ou uma mulher –, se você tem um(a) namorado(a) e sabe que ele vem mantendo alguns namoriscos de pequenas consequências, cá para nós, que ninguém nos ouça, faça que não vê, não dê pelota, deixa ele seguir com seu retoço externo, que em seguida ele cansa e volta para seu remanso.

Não se pode querer tomar conta total de quem se ama ou estima. Pode e deve acarinhá-lo, mas não o sufoque.

Cá para nós, se amamos profundamente alguém, até é bom que esse nosso amor circule pelo mundo e mantenha estreitas relações de amizade com outras pessoas. Quando voltar de suas relações de amizade, será muito mais afetivo e estuante de amor conosco.
E, lembre-se bem, se você ama ou estima alguém, tenha sempre tolerância com ele. A tolerância é fundamental em qualquer relação amorosa ou de amizade. Está totalmente incapacitado para amar ou ser amigo quem não dedica tolerância à pessoa amada ou estimada. A tolerância é a aurora de qualquer relação, a intolerância é o crepúsculo.

Paulo Sant'Ana
Zero Hora 17/10/2009

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A metamorfose


Me tira esse troço.

_ Hein?

_ Esse troço.

_ O um…

_ Isso. O umbigo.

_ Mas como é que a senhora vai ficar sem umbigo?

_ Pra que que serve o umbigo?

_ Bom, o umbig…

_ Pra nada. Nada! Não tem função.

_ Mas, minha senhora, a senhora…

_ Você não é cirurgião plástico?

_ Sim, eu sou, eu…

_ Consegue tirar o meu umbigo?

_ Claro que consigo.

_ Então me tira esse troço.

Estava decidida. Não ia mais se arriscar. Arrancaria o mal pela raiz. Alisaria a barriga. Extirparia não apenas a bolota que se lhe saltara, mas o umbigo inteiro, num zaz.

E assim o fez.

Zaz.

Saiu da mesa de operações sem o umbigo.

Passadas algumas semanas, resolveu estrear o ventre novo na praia. Meteu-se em um biquíni mínimo. Pelo espelho grande do quarto, avaliou a nova aparência. As pernas compridas, que sempre foram seu trunfo, continuavam compridas, macias e firmes. Se há uma coisa que, em geral, se mantém na mulher, são as pernas, e as dela eram pernas de propaganda de creme de depilação, ah eram. Belas pernas.

A bunda ainda não cedera à força da gravidade, resultado de minutos sem fim de exercícios diários para os glúteos na academia. Verdade que aqui e ali surgiam dobras indesejáveis, mas, enfim, o que fazer? Mesmo as meninas mais tenras agora apresentavam celulite e algumas até, o horror!, estrias. Muito ketchup, só podia ser.

Os seios também resistiam com bravura, dois valentes soldados postados de vigília em frente ao forte. Ela já havia decidido que, quando desabassem, colocaria silicone sem o menor dó. Teria seios redondos e empinados, os homens a olhariam e a chamariam de vaca de divinas tetas. Mas ainda não chegara a hora. Os seios continuavam em estado satisfatório, embora tivessem uma coisinha de que ela não gostava: um olhava para um lado, outro para o outro. Isso a irritava. Mas, quando colocasse silicone, corrigiria esse defeito também.

Finalmente, ela examinou a barriga.

Lisa.

Perfeita.

Sem umbigo.

Sorriu. Amarrou uma canga à cintura.

E marchou em direção ao mar marulhante.

Não demorou a acontecer. Mal pisou na areia, reparou que os homens a observavam com gula. Mas não foram eles, foi uma mulher quem notou. Uma magricela de cabelo vermelho. Ela viu quando a mulher apontou diretamente para onde devia existir umbigo em sua barriga, num gesto que tentava ser discreto. Logo, a turma da mulher de cabelo vermelho enviava olhares para a sua barriga. Em alguns minutos, todo um naco da praia passava diante dela e esticava o olhar para seu ex-umbigo. Houve uma mudança no ambiente, ela sentiu que havia uma agitação, um murmurinho, uma excitação inusual provocada… pelo seu umbigo. Ou pela falta dele.

Suportou aquilo por alguns minutos, tentou não se abalar. Mas no momento em que as crianças se acercaram dela, no momento em que riram e a chamaram de A Mulher Sem Umbigo, então ela passou a se achar uma anomalia, um ser de outro planeta, uma pária. Levantou-se da toalha, protegeu o corpo com a canga e foi-se embora, ouvindo, ao longe, as gargalhadas do povo cruel, que repetia “sem umbigo, sem umbigo, sem umbigo…”

É assim que é. As pessoas não aceitam o diferente. Não aceitam o novo. Ela nunca mais foi à praia. Ela rejeita todos os homens. Como poderia se despir diante de um, se sabia que ele iria rir, ou, pior, falhar nas lides do amor devido à sua… deformidade?

Ela se enclausurou. Ela se tornou amarga. Ela passa os dias a sofrer. Porque, ao contrário de todas as pessoas da Humanidade em todos os tempos, bilhões e bilhões de seres humanos em milhões e milhões de anos, ela é uma mulher sem umbigo. A única e triste mulher sem umbigo.


domingo, 12 de dezembro de 2010

Acorrentados


Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga;
quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de 10 minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos líquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieroglífo da existência; quem não se acanha de achar o por do sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz
ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.



Paulo Mendes Campos

Canções

Se não houvesse montanhas!
Se não houvesse paredes!
Se o sonho tecesse malhas
e os braços colhessem redes!

Se a noite e o dia passassem
como nuvens, sem cadeias,
e os instantes da memória
fossem vento nas areias!

Se não houvesse saudade,
solidão nem despedida ...
Se a vida inteira não fosse,
além de breve, perdida!

Eu tinha um cavalo de asas,
que morreu sem ter pascigo.
E em labirintos se movem
os fantasmas que persigo.

Cecília Meireles

sábado, 11 de dezembro de 2010

Consoada


Quando a Indesejada das gentes chegar

(Não sei se dura ou caroável).

Talvez eu tenha medo.

Talvez sorria ou diga:

-Alô, iniludível!

O meu dia foi bom, pode a noite descer.

(A noite com seus sortilégios.)

Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,

A mesa posta,

Com cada coisa em seu lugar.


Manuel Bandeira

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Flechas contra o muro


Pra se poder viver

compra-se o mundo em que

se vive.

Como quem compra um objeto

secreto, mas visível.

Compram-se os seus problemas

sem solução.

Quem nasce no mundo de hoje,

compra, sem o querer,

uma pomba.

Com um alfinete feérico

na cabeça.


Uma pomba extremamente vizinha

de bomba.

Uma e outra têm asas.

Uma e outra são limpas.

Ambas são irmãs pelo som.

Um simples equívoco

de fonemas ou de telefonemas

entre os dois hemisférios

uma troca de p por b

e o mundo explodirá

em nossa mão

(p) bomba.


Cassiano Ricardo

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Reis Magos


E para ouvir sua história

vieram três reis encantados:

um vermelho, o que lhe trouxe

a manhã como presente;

outro branco, o que lhe havia

feito presente do dia;

outro preto, finalmente,

rosto cortado de açoite,

O que lhe trouxera a Noite ...


Cassiano Ricardo

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A hora do cansaço


As coisas que amamos,

as pessoas que amamos

são eternas até certo ponto.

Duram o infinito variável

no limite do nosso poder

de respirar a eternidade.


Pensá-las é pensar que não acabam nunca,

dar-lhes moldura de granito.

De outra matéria se tornam, absoluta,

numa outra (maior) realidade.


Começam a esmaecer quando nos cansamos,

e todos nós cansamos, por um ou outro itinerário,

de aspirar a resina do eterno.

Já não pretendemos que sejam imperecíveis.

Restituimos cada ser e coisa à condição precária,

rebaixamos o amor ao estado de inutilidade.


Do sonho de eterno fica esse gosto acre

na boca, na mente,sei lá, talvez no ar.


Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Amantes


Os dois amantes sentados num banco
Já se cansaram, nem se olham mais,
Esgotando os beijos e os abraços.

Pensaram um dia que o carinho fosse eterno:
Estão ligados somente pela falta de assunto
E pelo murmúrio das ondas
A luz da tarde é febril.
E triste o final do amor.

Murilo Mendes

domingo, 5 de dezembro de 2010

Desejo que desejes


Eu desejo que desejes ser feliz de um modo possível e rápido,desejo que desejes uma via expressa rumo a realizações não-utópicas, mas viáveis, que desejes coisas simples como um suco gelado depois de correr ou um abraço ao chegar em casa, desejo que desejes com discernimento e com alvos bem-mirados.

Mas desejo também que desejes com audácia,que desejes uns sonhos descabidos e que ao sabê-los impossíveis não os leve em grande consideração, mas os mantenha acesos, livres de frustação, desejes com fantasia e atrevimento, estando alerta para as casualidades e os milagres, para o imponderável da vida, onde os desejos secretos são atendidos.

Desejo que desejes trabalhar melhor, que desejes amar com menos amarras, que desejes parar de fumar, que desejes viajar para bem longe e desejes voltar para o teu canto, desejo que desejes crescer e que desejes o choro e o silêncio, através deles somos puxados para dentro, eu desejo que desejes ter a coragem de se enxergar mais nitidamente.

Mas desejo também que desejes uma alegria incontida, que desejes mais amigos, e nem precisam ser melhores amigos, basta que sejam bons parceiros de esporte e de mesas de bar, que desejes o bar tanto quanto a igreja, mas que o desejo pelo encontro seja sincero, que desejes escutar as histórias dos outros, que desejes acreditar nelas e desacreditar também - faz parte este ir-e-vir de incertezas-, que desejes não ter tantos desejos concretos, que o desejo maior seja a convivência pacífica com os outros que desejam outras coisas.

Desejo que desejes alguma mudança, uma mudança que seja necessária e que ela não te pese na alma ; mudanças são temidas, mas não há outro combustível para essa travessia. Desejo que desejes um ano inteiro de muitos meses bem fechados, que nada fique por fazer, e desejo, principalmente, que desejes desejar, que te permitas desejar, pois o desejo é vigoroso e gratuito, o desejo é inocente, não reprime teus pedidos ocultos, desejo que desejes vitórias, romances, diagnósticos favoráveis, aplausos, mais dinheiro e sentimentos vários, mas desejo antes de tudo que desejes, simplesmente.


Martha Medeiros