segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Os últimos dias




Não sei se esta é uma boa hora para falar nisso, mas se a previsão de que o mundo vai acabar em 2012 estiver correta, este é o último Natal das nossas vidas. E o próximo Réveillon tem a obrigação de ser uma festa para acabar com todas as festas, pois depois não haverá remorsos nem recriminações – depois não haverá mais nada.


Você está livre para fazer, na Festa do Último Fim de Ano, tudo que sempre pensou em fazer mas foi detido pela moral, os bons costumes, o Código Civil e seu instinto de preservação. Pode entrar na festa nu e sair caramelado. Pode derrubar o cantor da banda e tomar seu lugar pelo resto da noite, como sempre sonhou, rechaçando aos pontapés todas as tentativa de tirá-lo do palco. Pode dizer o que pensa de todas as pessoas de que não gosta e declarar sua paixão para todos os seus amores secretos, sem temer o revide ou o desdém. Pode fazer tudo isto sem pensar na sua reputação, pois se a previsão estiver certa ninguém mais vai ter uma reputação.


Deve-se pensar em alguma medidas práticas a serem tomadas na iminência do fim do mundo. Começar a comprar tudo com cheques pré-datados ou a crédito, por exemplo. Usar ao máximo os cartões de crédito, inclusive nas viagens para o Exterior que se farão às pressas. E a crédito.


Conhecer o maior número de lugares que ainda não se conhece no mundo, numa espécie de tour de despedida. Fazer a Copa do Mundo de 2014 em seguida, sem esperar 2014. Encurtar o Carnaval deste ano para poder fazer, adiantados, os de 2013, 2014 e 2015.


Aproveitar todos os pores de sol possíveis, pois eles também serão os últimos. E isto é o mais difícil: passar a só dizer coisas definitivas. A proximidade do fim certamente aguçará nossos sentidos e nos tornará mais graves e filosóficos. Ou então, o contrário. Só dizer bobagens. Entregar-se à besteira e ir para o fim às gargalhadas. Pois se tudo vai acabar mesmo, se a morte do nosso planeta será apenas um pontinho ridículo pipocando na escuridão cósmica, para que fingir que algo de tudo isto era sério?


E o fim nos trará algumas vantagens. Tornará coisas como caderninhos com datas de aniversário, horóscopos e índices de colesterol sem sentido. Todos os tipos de restrições alimentares serão risíveis, poderemos comer de tudo que nos faz mal como se não houvesse amanhã – porque não haverá mesmo. Está bem, não veremos o fim das novelas, mas não será tão ruim assim.

Bom Natal para todos.


Luis Fernando Verissimo

Zero Hora 26/12/2011

domingo, 25 de dezembro de 2011

Organiza o Natal



Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.

Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso.
A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.
A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.
A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.
Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.
O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.
Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.
A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.
O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.




Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Natal



No ermo agreste, da noite e do presepe, um hino
De esperança pressaga enchia o céu, com o vento...
As árvores: "Serás o sol e o orvalho!" E o armento:
"Terás a glória!" E o luar: "Vencerás o destino!"


E o pão: "Darás o pão da terra e o pão divino!"
E a água: "Trarás alívio ao mártir e ao sedento!"
E a palha: "Dobrarás a cerviz do opulento!"
E o tecto: "Elevarás do opróbrio o pequenino!"


E os reis: "Rei, no teu reino, entrarás entre palmas!"
E os pastores: "Pastor, chamarás os eleitos!"
E a estrela: "Brilharás, como Deus, sobre as almas!"


Muda e humilde, porém, Maria, como escrava,
Tinha os olhos na terra em lágrimas desfeitos;
Sendo pobre, temia; e, sendo mãe, chorava.



Olavo Bilac

domingo, 18 de dezembro de 2011

A cilada



O perfume, o silêncio, a sombra... Os ninhos

Emudecem... E temos, sonhadores,

A humildade das ervas nos caminhos

E uma inocência de anjos entre as flores.


Mas há na tarde morna ignotos vinhos,

Secretos filtros, pérfidos vapores,

Amavios, feitiços e carinhos

Moles, quebrados e perturbadores...


E, de repente, o incêndio dos sentidos:

As mãos frias tateando na ansiedade,

As bocas que se buscam num queixume,

E o corpo, o sangue, o espírito perdidos,


E a febre, e os beijos... e a cumplicidade

Da sombra, do silêncio, do perfume...



Olavo Bilac

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

De vestido de oncinha e plumas



Outro dia aconteceu algo que me deixou sem saber direito o que pensar. Um caso corriqueiro, mas novidade pra mim. Quando era publicitária, trabalhei por três meses numa agência. Estamos falando do ano de 1984 ou seja, 27 anos atrás. Pois uma ex-colega da agência postou essa semana, no blog de uma confraria da qual faz parte, uma foto daquela época na qual apareço numa festa à fantasia. Uma homenagem que ela me fez, sem nenhuma intenção difamatória. Nem estou tão medonha na foto, apesar do cabelo estilo Dallas, do vestido de oncinha e da echarpe de plumas negras. Foi a primeira festa à fantasia a que fui. E a última.

Me garantiram que o blog é acessado por pouquíssimas pessoas. As confrades estavam crentes de que eu iria me comover. Mas, nascida com vários defeitos de fabricação, não me comovi. Em vez disso, considerei que a titular do blog poderia ter pedido autorização para publicar uma foto minha de 27 anos atrás. Seria atencioso da parte dela. Mas devo estar variando: quem pede licença antes de postar foto dos outros?

Lembrei de uma discussão que testemunhei entre duas amigas: uma delas havia ficado chateada por a outra ter postado a foto do seu chá de panela, em que ela aparecia completamente descomposta, mas descomposta de uma maneira que só quem já foi a um chá de panela sabe que é possível.

Já a outra amiga defendia o seu direito de postar o que quisesse, e de julgar ela mesma o que era descompostura e o que era apenas uma foto engraçada. De fato, era uma foto engraçada. Lembro que pensei: “Quá, quá, quá, que engraçado – ainda bem que não sou eu”.

Agora sou eu. E, se ainda não chegou sua vez, aguarde.

Tenho plena consciência de que, cada vez que tiro foto com um leitor numa sessão de autógrafos, aquela foto estará no Facebook em poucos segundos. Tudo bem. Meu trabalho faz com que me exponha, e sei que não há controle sobre a propagação de imagens. E, mesmo quando não é um evento profissional, tudo bem também: ao viajar com amigos ou ir a um churrasco, sei que serei fotografada junto ao grupo e logo estarei num álbum virtual, pra quem quiser espiar. Qualquer pessoa que se deixe fotografar, hoje, sabe que é assim. Se quiser discrição, melhor evaporar na hora do clique.

Não tive essa prerrogativa em 1984. Naquela época, nem em meus sonhos mais premonitórios poderia supor que o conceito de privacidade em breve estaria condenado à morte e que o “cá entre nós” seria substituído pelo “cá entre todos”. Por isso, a dúvida: temos o direito de ficar ressabiados por postarem nossas fotos pré-históricas sem nos consultar ou dá no mesmo se a foto foi tirada 27 anos atrás ou ontem à noite? Suspeito que estou sendo preciosista. Vaidosa. Tá bom: chata. Mas queria compartilhar essa indagação.

Quanto à ex-colega, sem mágoas. Assimilei. Nenhum problema de eu circular pela internet de oncinha e plumas. Ao menos estou vestida, ufa.

Martha Medeiros
Zero Hora 27/11/2011

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Rosai por nós





Nossa senhora da flor roxa
rosai por nós
assim na vida
como no chão
a primavera de cada ano
nos dai hoje
encantai nosso jardim
assim como encantamos
o do vizinho
e não nos deixeis cair na tentação
de esquecer tuas flores .



Alice Ruiz

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

O que acontece no meio

Imagem: Pablo Picasso


Vida é o que existe entre o nascimento e a morte. O que acontece no meio é o que importa.

No meio, a gente descobre que sexo sem amor também vale a pena, mas é ginástica, não tem transcendência nenhuma. Que tudo o que faz você voltar pra casa de mãos abanando (sem uma emoção, um conhecimento, uma surpresa, uma paz, uma ideia) foi perda de tempo. Que a primeira metade da vida é muito boa, mas da metade pro fim pode ser ainda melhor, se a gente aprendeu alguma coisa com os tropeços lá do início. Que o pensamento é uma aventura sem igual. Que é preciso abrir a nossa caixa preta de vez em quando, apesar do medo do que vamos encontrar lá dentro. Que maduro é aquele que mata no peito as vertigens e os espantos.

No meio, a gente descobre que sofremos mais com as coisas que imaginamos que estejam acontecendo do que com as que acontecem de fato. Que amar é lapidação, e não destruição. Que certos riscos compensam – o difícil é saber previamente quais. Que subir na vida é algo para se fazer sem pressa. Que é preciso dar uma colher de chá para o acaso. Que tudo que é muito rápido pode ser bem frustrante. Que Veneza, Mykonos, Bali e Patagônia são lugares excitantes, mas que incrível mesmo é se sentir feliz dentro da própria casa. Que a vontade é quase sempre mais forte que a razão. Quase? Ora, é sempre mais forte.

No meio, a gente descobre que reconhecer um problema é o primeiro passo para resolvê-lo. Que é muito narcisista ficar se consumindo consigo próprio. Que todas as escolhas geram dúvida, todas. Que depois de lutar pelo direito de ser diferente, chega a bendita hora de se permitir a indiferença. Que adultos se divertem muito mais do que os adolescentes. Que uma perda, qualquer perda, é um aperitivo da morte – mas não é a morte, que essa só acontece no fim, e ainda estamos falando do meio.

No meio, a gente descobre que precisa guardar a senha não apenas do banco e da caixa postal, mas a senha que nos revela a nós mesmos. Que passar pela vida à toa é um desperdício imperdoável. Que as mesmas coisas que nos exibem também nos escondem (escrever, por exemplo). Que tocar na dor do outro exige delicadeza. Que ser feliz pode ser uma decisão, não apenas uma contingência. Que não é preciso se estressar tanto em busca do orgasmo, há outras coisas que também levam ao clímax: um poema, um gol, um show, um beijo.

No meio, a gente descobre que fazer a coisa certa é sempre um ato revolucionário. Que é mais produtivo agir do que reagir. Que a vida não oferece opção: ou você segue, ou você segue. Que a pior maneira de avaliar a si mesmo é se comparando com os demais. Que a verdadeira paz é aquela que nasce da verdade. E que harmonizar o que pensamos, sentimos e fazemos é um desafio que leva uma vida toda, esse meio todo.

Martha Medeiros



Zero Hora 04/12/2011

domingo, 4 de dezembro de 2011

Antes que



Preciso ler um bom poema

antes de dormir
antes que a noite

encerre o diário inventário das lembranças
antes que o sono cale a boca e olhar,

antes que o prumo caia
horizontal.


Preciso ler um bom poema

antes
que seja tarde
que fique escuro
que chegue o frio.


Ler um bom poema
antes que a morte venha
e escreva o seu.


Marina Colasanti

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Vida ...vida



"Quero, um dia,
dizer às pessoas que nada foi em vão...
Que o amor existe,
que vale a pena se doar às amizades e às pessoas,
que a vida é bela sim e que eu sempre dei o melhor de mim...
e que valeu a pena."


Mario Quintana

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Envelhecer



envelhecemos quando nos fechamos
para as novas idéias e nos tornamos radical,
envelhecemos quando o novo nos assusta
e nossa mente insiste em não aceitar,
envelhecemos quando nos tornamos impacientes,
intransigentes e não consiguimos dialogar,
envelhecemos quando nosso pensamento
abandona nossa casa
e retorna sem nada a acrescentar,
envelheçemos quando muito nos preocupamos
e depois nos culpamos porque não tínhamos
tantos motivos para nos preocupar,
envelhecemos quando pensamos demasiadamente
em nós mesmos e conseqüentemente
nos esquecemos dos outros,
envelhecemos quando pensamos em ousar
e já imaginamos o preço
que teremos que pagar pelo ato,
envelhecemos quando temos a chance de amar
e deixamos o coração a pensar:
será que vale a pena correr o risco?
será que vai compensar?
envelhecemos quando permitimos
que o cansaço e o desalento
tomem conta da nossa alma
que se põe a lamentar,

envelhecemos, enfim,
quando paramos de lutar,
quando paramos de viver,
quando paramos de amar...