quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Valsa para uma menininha



Menininha do meu coração

Eu só quero você
A três palmos do chão
Menininha, não cresça mais não
Fique pequenininha na minha canção
Senhorinha levada
Batendo palminha
Fingindo assustada
Do bicho-papão
Menininha, que graça é você
Uma coisinha assim
Começando a viver
Fique assim, meu amor
Sem crescer
Porque o mundo é ruim, é ruim
E você vai sofrer de repente
Uma desilusão
Porque a vida é somente
Teu bicho-papão
Fique assim, fique assim
Sempre assim
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
E também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim
De tudo o que eu amei.

Vinicius de Moraes







terça-feira, 30 de outubro de 2012

O princípio da incerteza

O professor tinha uma tática para lidar com a Sandrinha e não explodir

O professor virou-se e viu que a Sandrinha não estava escrevendo. Todos na aula copiavam o que o professor tinha escrito no quadro-negro, menos a Sandrinha. A Sandrinha estava dobrando e alisando um pedaço de papel.

– Dona Sandra, o que a senhora está fazendo? – perguntou o professor.

– Um aviãozinho, professor.

– Dona Sandra, eu pedi para copiarem o que eu estou escrevendo no quadro-negro sobre a teoria da incerteza de Heisenberg.

– Eu sei, professor. Mas eu estou preparando uma experiência prática sobre o mesmo assunto.

– Nossa aula hoje é sobre física quântica, dona Sandra.

– A minha experiência também.

O professor tinha desenvolvido uma tática para lidar com a Sandrinha. Para não explodir, contava até três. Desta vez contou até seis. Depois perguntou:

– E que a sua experiência tem a ver com o princípio da incerteza de Heisenberg, dona Sandra?

– Quando o aviãozinho ficar pronto, vou atirar para o alto, sem saber onde ele vai cair. Se bater em alguém, ou cair próximo de alguém, é a pessoa que eu vou namorar neste trimestre.

Por um momento, o único ruído ouvido na sala foi o do riso abafado. Desta vez, pensaram todos, a Sandrinha conseguiria. O professor perderia o controle. Atiraria a Sandrinha pela janela. Ou ele se atiraria pela janela. De qualquer maneira, haveria uma explosão. Mas o professor manteve o controle, depois de contar até dez.

– E se cair perto de uma pessoa do sexo feminino, dona Sandra?

– Não tenho preconceito, professor.

– Só não entendi o que seu aviãozinho tem a ver com a teoria de Heisenberg.

– A incerteza. Ninguém sabe onde ele vai cair.

– Não, dona Sandra. É muito mais complexo do que isso. É...

– A teoria não diz que a ação humana interfere na observação das partículas subatômicas? Que por isso a medição dos seus movimentos é sempre incerta?

Pois eu posso direcionar meu aviãozinho para um lado que me interessa. Ele vai dar voltas no ar, mas sua trajetória não será inteiramente aleatória. Minha vontade vai influir no seu destino. Pronto. Uma aula prática, professor.

O professor fechou os olhos. Um, dois, três, quatro...

– Faça o que quiser, dona Sandra. Vou continuar dando a minha aula. Voltou para o quadro-negro e continuou a escrever. Dali a pouco, ouviu uma agitação às suas costas. O aviãozinho da Sandrinha tinha decolado. Virou-se a tempo de receber o aviãozinho no peito. E ouvir a voz da Sandrinha:

– O senhor é casado, professor?



Luis Fernando Verissimo

Zero Hora  28/10/2012

terça-feira, 23 de outubro de 2012

São Francisco

Lá vai São Francisco

Pelo caminho

De pé descalço

Tão pobrezinho

Dormindo à noite

Junto ao moinho

Bebendo a água

Do ribeirinho



Lá vai São Francisco

De pé no chão

Levando nada

No seu surrão

Dizendo ao vento

Bom dia, amigo

Dizendo ao fogo

Saúde, irmão



Lá vai São Francisco

Pelo caminho

Levando ao colo

Jesus Cristinho

Fazendo festa

No menininho

Contando histórias

Pros passarinhos.

Vinicius de Moraes



quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A arte de enganar




O uso da emoção é um dos instrumentos mais comuns nas campanhas eleitorais.

Quanto menos informada é a população de eleitores, mais a emoção é eficaz para conseguir votos. Embora isso seja pouco ou nada mais divulgado, no Brasil a tentativa de envolver as emoções no turbilhão eleitoral é, provavelmente, a ferramenta mais importante de uma campanha.

Cerca de 70% dos eleitores brasileiros não têm o primeiro grau completo. Na visão dos políticos, dos publicitários e especialistas que dirigem campanhas eleitorais, é bem mais prático influenciar essas pessoas usando sua emoção do que a razão. Mostrar as dificuldades reais do país através de estudos técnicos, apresentar gráficos, discutir opções teóricas de caminhos a serem seguidos e propor planos de governo reais, tudo isso é considerado totalmente sem efeito, inútil, por aqueles que dirigem campanhas eleitorais.

Qual foi, então, a solução encontrada para essas campanhas? O uso da emoção, dos sentimentos humanos. Para isso nada mais apropriado que o uso da televisão. Um discurso flamejante, teatral, humano, fraternal, igual, salvador, uma música envolvente com letra heróica e uma seqüência estudada de imagens cinematográficas que mexem com a alma; essa é a fórmula básica da conquista de votos no Brasil. Nesta campanha o uso da televisão foi limitado. Não poderão ser usadas as caríssimas produções que buscavam mexer com a alma humana. Basicamente, os candidatos vão ter que se dirigir pessoalmente aos eleitores, sem imagens produzidas. Vai ser mais difícil, mas certamente vão ser usadas ao máximo as técnicas que buscam tirar proveito da emoção.

Mas não é só emoção. No Brasil ela funciona junto com alguma coisa que pode parecer racional ao eleitor. Na maioria das campanhas para presidente, governador e prefeito, são feitas pesquisas entre os eleitores, verificando quais são seus principais anseios e desejos. Por exemplo: um candidato a governador verifica que seus possíveis eleitores têm como prioridade a habitação. A partir dessa constatação toda a parte aparentemente racional da campanha será dirigida basicamente para esse tema. Se na pesquisa os eleitores demonstram que querem eleger um candidato que combata a corrupção, dá-lhe discurso contra a corrupção. A técnica é trabalhar com as emoções e com os anseios. A verdade pouco importa.

Como os orçamentos públicos são sempre menores do que o eleitor quer, os candidatos são aconselhados a prometer, sem tocar na questão dos recursos. Não há pudor: se promete tudo. E num pacote de emoção e promessas, evidentemente acompanhadas de críticas à atual situação, se arrancam os votos. Com a certeza de que, depois, ninguém vai cobrar as promessas. Há até quem diga que promessa eleitoral não deve ser cobrada porque não é para valer.

É claro que nisso tudo há exceções. Mas são poucas.

Se todos nós voltássemos com mais razões e menos emoção, procurando ver o que representam e quem são realmente os candidatos, o que eles fizeram e falaram no passado, certamente teríamos um Brasil melhor. Mas esta é uma outra história que fica para uma outra vez.



Boris Casoy

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Sonhar


Tomate previne isso, cebola previne aquilo, chocolate faz bem, chocolate faz mal, um cálice diário de vinho não tem problema, qualquer gole de álcool é nocivo, tome água em abundância, mas não exagere... Diante desta profusão de descobertas, acho mais seguro não mudar de hábitos. Sei direitinho o que faz bem e o que faz mal pra minha saúde. Prazer faz muito bem. Dormir me deixa 0 km. Ler um bom livro faz-me sentir novo em folha. Viajar me deixa tenso antes de embarcar, mas depois rejuvenesço uns cinco anos. Viagens aéreas não me incham as pernas; incham-me o cérebro, volto cheio de idéias. Brigar me provoca arritmia cardíaca. Ver pessoas tendo acessos de estupidez me embrulha o estômago. Testemunhar gente jogando lata de cerveja pela janela do carro me faz perder toda a fé no ser humano. E telejornais... Os médicos deveriam proibir - como doem! Caminhar faz bem, dançar faz bem, ficar em silêncio


quando uma discussão está pegando fogo, faz muito bem! Você exercita o autocontrole e ainda acorda no outro dia sem se sentir arrependido de nada. Acordar de manhã arrependido do que disse ou do que fez ontem à noite é prejudicial à saúde! E passar o resto do dia sem coragem para pedir desculpas, pior ainda! Não pedir perdão pelas nossas mancadas dá câncer, não há tomate ou mussarela que previna. Ir ao cinema, conseguir um lugar central nas fileiras do fundo, não ter ninguém atrapalhando sua visão, nenhum celular tocando e o filme ser espetacular, uau! Cinema é melhor pra saúde do que pipoca! Conversa é melhor do que piada. Exercício é melhor do que cirurgia. Humor é melhor do que rancor. Amigos são melhores do que gente influente. Economia é melhor do que dívida. Pergunta é melhor do que dúvida. Sonhar é melhor do que nada!


Martha Medeiros

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Saudade

"Como quando se tira um vestido velho do baú,

um vestido que não é para usar, só para olhar.

Só para ver como ele era.

Depois a gente dobra de novo e guarda mas não se cogita em jogar fora ou dar.

Acho que saudade é isso."



Lygia Fagundes Telles

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Outubro




Cessou o aguaceiro.

Há bolhas novas nas folhas

do velho salgueiro.

Guilherme de Almeida