segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A delícia do medo



Se há uma sensação que consome o homem, aniquila-o, vai devorando-o aos poucos, é o medo. O medo acompanha o homem desde o seu nascimento e só desaparece com a morte.

Quando experimenta o medo real, o homem passa a enfrentar outra tragédia: o medo imaginário, o medo sem razão de ser, sem aparente causa concreta, que se transforma em devoradora doença mental, marcada pelas atrozes e assustadoras fobias.

Alguém que já tenha alguma vez na vida experimentado a sensação da fome, nunca mais se livrará dela: pelo medo de que por alguma forma aquele fato se repita.

A pessoa que tem medo exacerbado sofre mil vezes antes que a circunstância temida se verifique. É possível que nunca aquela ameaça se concretize, no entanto quem tem medo de que ela venha a ocorrer vê-se consumido pelo terror, embora realmente muitas vezes não tenha sequer corrido o menor risco material de vir a ser atingido pelo mal imaginário.

Estranha pois que esse inimigo maior da mente e do equilíbrio humano seja tão almejado pelas pessoas que vão ao cinema ou se fixam na televisão para assistir a filmes de terror. Isso só pode ser explicado pela lei filosófica que estabelece ser o medo o módulo principal do instinto de sobrevivência dos homens e dos animais. Segundo essa lei, sem o medo o homem não sobreviveria, ele se tornaria facilmente vulnerável a todas as adversidades.

Agora mesmo estão sendo lançados no Brasil dois filmes de terror que prometem levar multidões ao cinema: O Amigo oculto e uma nova versão de O Massacre da Serra Elétrica.

Afinal, que motivo arrasta as pessoas ao cinema para experimentarem essa sensação tão sofrida e indesejável que é o medo?

Há quem não perca filme de terror. Esses espectadores sentem-se tomados pelo mesmo medo apavorante que domina os personagens ameaçados no filme. Sofrem gratuitamente com o horror sentido pelas vítimas escolhidas pelo autor da história, pagam ingresso para sofrer.

Só pode haver delícia nesse sentimento masoquista.

Tenho que atribuir a um fator psíquico essa obstinação das pessoas em procurar o medo: de alguma forma a pessoa se deixa mergulhar em tal terror, que, passada a cena horrorizante ou o filme inteiro, o espectador se dá conta de que nada aconteceu com ele, que os perigos configurados por sua mente não redundaram em qualquer dano a si, o que lhe causa um grande alívio.

E essa sensação de ter-se preservado íntegro depois de correr tantos perigos é profundamente deliciosa, um verdadeiro orgasmo cataclísmico. Ou seja, as pessoas que são viciadas em filmes de terror acabam atraídas para o cinema ou televisão pelo prazer sadomasoquista de que, mesmo sentindo um medo gélido e arrepiante, que se abate logicamente também sobre os personagens da ficção, safam-se ao fim das cenas, ou do filme, de todos os riscos e perigos por que passaram ao investirem-se no papel das vítimas da história a que estão assistindo, festejando íntima e efusivamente, ao irem embora para casa, que nada lhes aconteceu, ao contrário dos que tombaram durante o decorrer da película.

O fato gritante é que o homem detesta o medo, mas paradoxalmente o procura, parecendo não poder viver sem ele.

É o caso dos esportes radicais: que impulso ou sentimento leva as pessoas, por exemplo, a deixarem-se amarrar num pé a uma corda elástica de 70 metros de altura e lançarem-se num abismo? É verdade que sentem-se seguras de que não vão se despedaçar no solo, no entanto o medo devastador que sentem no percurso não é presumivelmente suficiente para recompensar-lhes o golpe terrificante que sofrem até que a corda se estique.

O mesmo com os pára-quedistas, com os domadores de feras, com os pilotos de corridas, eles sentem um prazer carnal, uma euforia hedônica ao arriscarem suas vidas.

Não resta dúvida de que estranha e exoticamente o homem busca o medo como forma inseparável de continuar existindo, ou seja, como simplesmente viver já se constitui num risco, não correr risco é morrer.

Não fosse assim e desde o início da humanidade quatrilhões de pessoas não teriam se atirado obstinada, obsessiva, fatal e inevitavelmente ao trágico ou arriscado desatino do casamento.



Paulo Sant'Ana

Zero Hora 27/02/2005

sábado, 29 de outubro de 2011

Valer a pena



“As vezes ouço passar o vento...



E só de ouvir o vento passar



vale a pena ter nascido.”

Fernando Pessoa

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Verdade



E se é verdade que o tempo não volta,



também deveria ser verdade



que os amigos



não se perdem.”




Caio F. Abreu

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Sentimentos no lixo



Se meu lixo pudesse falar; ele leria cartas de amor, e recitaria versos de dor.
Ele reclamaria de meus sentimentos, e também de meus segredos. Ele sofreria com papéis rasgados, cheio de ódio de quem os jogou fora.
Meu lixo com certeza é um intelectual, pois já mandei para ele muita tarefa de casa atrasada e também a que tinha de ser refeita. Provavelmente enquanto não estiver tentando decifrar minha confusa letra, ele está tentando digerir o que entendeu.
Meu lixo deve ser sentimental, porque quando canso de algum sentimento é ele a quem recorro. Acho que de tantos sentimentos que meu lixo já tem, com o tempo ele me devolve alguns. O mais recente foi o amor.
E eu quero jogar o amor no lixo, mas o lixo não quer o amor. O lixo já tem a dor, a depressão, a derrota, a desesperança, a desistência... Isso tudo do pequeno dicionário que docemente lhe doei... Em um acesso anti-gramatical recente. Agora que ele sabe o que são, não quer mais.
Mas não entendo porque um lixo tão inteligente foi burro de começar o dicionário ao contrário, então foi lendo: Z, Y, X, W, V... E empacou na letra D.
Mas que lixo burro! Por que foi parar logo nas palavras ruins? Se você for mais um pouco para frente, encontrará a letra A, onde está o amor, e não vai mais ignorar minha oferta!
Ah é? Vou tirar daí de dentro então o meu caderno, de onde você tira suas palavras.
Ah, magoou? Mas é agora que eu pego de volta minhas cartas de amor!
E aí? O que vai fazer? Vou pegar também esses deveres de casa, que você tanto tenta corrigir.
E esse dicionário, obrigada, que começa pela letra A e termina pela letra Z, caso você queira saber.
E agora lixo? Quer o meu amor?
Mas nem esse eu vou mais te dar, porque agora ele tem amigos para conviver no dicionário, e vizinhos com quem conversar em meus textos! E agora lixo? O que me diz?
Puxa... Não sobrou sentimento para o lixo.


Lara Vic.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Direito




“Não se sinta no direito a nada




que você




não tenha lutado ou conseguido




com o seu suor”





Marian W Edelman

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Borboleta



Qual casulo quase seco
que parece padecer,
sou assim neste momento,
esperando envelhecer.
Estou presa às lembranças
de um passado bem distante.
Ouço o vento que balança
minha vida, qual gigante.
Estou sozinha no casulo
respeitando a natureza,
qual lagarta solitária
que ama a vida,
com certeza.
Ao final de cada ciclo
e um passado bem distante,
ganho asas coloridas
e a vida sigo adiante.

Neida Wobeto

domingo, 9 de outubro de 2011

As espigas de Aninha



A estrada da vida
pode ser longa e áspera.
Faça-a mais longa e suave.
Caminhando e cantando
com as mãos cheias de sementes.

A um jovem distante
o Pai deu uma gleba de terra,
e disse: trabalha, produz.
Era no tempo e ele plantou...
E me mandou no tempo quatro espigas de sua planta,
enfeitadas com os selos caros do correio.

Como o Leitor receberia este presente?

Era abril na minha cidade.
Páscoa.
Sempre, abril é Páscoa.
Recebi as espigas resguardadas em meia palha dourada,
símbolo de um trabalho fecundo.

Preparando sua terra
plantando e produzindo,
ele estava esquecendo angústias
do presente
e enchendo a tulha do futuro.

Eu o abençoei de longe
com a ternura dos meus cabelos brancos.


Cora Coralina

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Estou cansado



Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.




De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.




A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.




Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?




Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

Álvaro de Campos
(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Filosofia para a velhice



Sabias que a única época da vida em que gostamos de ficar velhos é quando somos crianças? Se tens menos de 10 anos, estás tão entusiasmado em envelhecer que pensas em frações.

“Quantos anos tens? Tenho quatro e meio!”
Tu nunca terás trinta e seis e meio. Tens quatro e meio, quase cinco! Esta é a chave!
Quando chegas à adolescência, ninguém mais te segura. Saltas para um número próximo, ou mesmo alguns à frente.

‘Quantos anos tens?'
‘Vou fazer 16!'
Podes ter 13, mas… “vou fazer 16”!
E, então, o maior dia da tua vida ...
Completaste 21.
Até as palavras soam como uma cerimónia.

COMPLETASTE 21... YESSSS!

Mas, então, chegas aos 30. Oh,
que aconteceu?
Isso faz-te parecer leite estragado! Fica azedo, temos que o deitar fora. Não tem mais graça, agora é apenas um bolo azedo. O que está errado? O que mudou?
COMPLETAS 21, ATINGES 30, aí estás ‘A EMPURRAR' 40. Putz! Trava, está tudo a derrapar! Antes que te dês conta, CHEGAS aos 50 e os teus sonhos foram-se·

Mas, espera!
FIZESTE 60.
Nem sequer pensaste que conseguirias!

Assim, COMPLETAS 21, ‘TORNAS-TE' 30, 'EMPURRAS' os 40, CHEGAS aos 50 e ALCANÇAS os 60.

Atingiste tal velocidade que bates nos 70!
Depois disso, é um dia após o outro…
Alcançaste Wednesday, October 5, 2011!

Conseguiste chegar aos 80 e cada dia é um ciclo completo: alcançaste o almoço; passaste as 4:30 ; chegaste à hora de deitar.
E não acaba nos 90, começas então a voltar atrás:
‘Eu tinha exactamente 92 anos...'

Aí, acontece uma coisa estranha. Se passares dos 100, tornas-te criança outra vez. 'Eu tenho 100 e meio.
Que todos vós chegueis a uns saudáveis 100 e meio!’

George Carlin