quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Reflexões


A gente pode morar numa casa mais ou menos,
numa rua mais ou menos,
numa cidade mais ou menos,
e até ter um governo mais ou menos.


A gente pode dormir numa cama mais ou menos,
comer um feijão mais ou menos,
ter um transporte mais ou menos,
e até ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro.


A gente pode olhar em volta e sentir que tudo está mais ou menos...

Tudo bem!


O que a gente não pode mesmo, nunca, de jeito nenhum...
é amar mais ou menos, sonhar mais ou menos, ser amigo mais ou menos,
namorar mais ou menos, ter fé mais ou menos, e acreditar mais ou menos.
Senão a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais ou menos.

Chico Xavier

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

José


E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?,
Está sem mulher
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Carlos Drummond de Andrade

Saudade


Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...


Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...


Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...


Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.


E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.


O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.

Pablo Neruda

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Simpatia


O que é - simpatia

Simpatia - são dois galhos
Banhados de bons orvalhos
Nas mangueiras do jardim;
Bem longo às vezes nascidos,
Mas que se juntam crescidos
E que se abraçam por fim.


São duas almas bem gêmeas
Que riem no mesmo riso,
Que choram nos mesmos ais;
São vozes de dois amantes,
Duas liras semelhantes,
Ou dois poemas iguais.


Simpatia - meu anjinho,
É o canto do passarinho,
É o doce aroma da flor;
São nuvens dum céu d'Agosto,
É o que m'inspira teu rosto...
- Simpatia - é - quase amor!


Casimiro de Abreu

1857.

Canção do Tamoio

Imagem:http://www.meionorte.com/imagens/

Canção do Tamoio


Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.

II

Um dia vivemos!
O homem que é forte
Não teme da morte;
Só teme fugir;
No arco que entesa
Tem certa uma presa,
Quer seja tapuia,
Condor ou tapir.

III

O forte, o cobarde
Seus feitos inveja
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!

IV

Domina, se vive;
Se morre, descansa
Dos seus na lembrança,
Na voz do porvir.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
Que a morte há de vir!

V

E pois que és meu filho,
Meus brios reveste;
Tamoio nasceste,
Valente serás.
Sê duro guerreiro,
Robusto, fragueiro,
Brasão dos tamoios
Na guerra e na paz.

VI

Teu grito de guerra
Retumbe aos ouvidos
D'imigos transidos
Por vil comoção;
E tremam d'ouvi-lo
Pior que o sibilo
Das setas ligeiras,
Pior que o trovão.

VII

E a mão nessas tabas,
Querendo calados
Os filhos criados
Na lei do terror;
Teu nome lhes diga,
Que a gente inimiga
Talvez não escute
Sem pranto, sem dor!

VIII

Porém se a fortuna,
Traindo teus passos,
Te arroja nos laços
Do inimigo falaz!
Na última hora
Teus feitos memora,
Tranqüilo nos gestos,
Impávido, audaz.

IX

E cai como o tronco
Do raio tocado,
Partido, rojado
Por larga extensão;
Assim morre o forte!
No passo da morte
Triunfa, conquista
Mais alto brasão.

X

As armas ensaia,
Penetra na vida:
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.


Gonçalves Dias

domingo, 25 de outubro de 2009

Pedaços


Pedaços de Mim


Eu sou feito de
Sonhos interrompidos
detalhes despercebidos
amores mal resolvidos

Sou feito de
Choros sem ter razão
pessoas no coração
atos por impulsão

Sinto falta de
Lugares que não conheci
experiências que não vivi
momentos que já esqueci

Eu sou
Amor e carinho constante
distraída até o bastante
não paro por instante


Tive noites mal dormidas
perdi pessoas muito queridas
cumpri coisas não-prometidas

Muitas vezes eu
Desisti sem mesmo tentar
pensei em fugir,para não enfrentar
sorri para não chorar

Eu sinto pelas
Coisas que não mudei
amizades que não cultivei
aqueles que eu julguei
coisas que eu falei

Tenho saudade
De pessoas que fui conhecendo
lembranças que fui esquecendo
amigos que acabei perdendo
Mas continuo vivendo e aprendendo.


Martha Medeiros

sábado, 24 de outubro de 2009

O campeão

O carrinho e O Campeão


Não chorei quando assisti ao filme O Campeão lá no longínquo desfecho dos anos 70. Prova de macheza. Todo mundo saía do cinema com os olhos injetados, assoando o nariz, ou em pranto desbragado. Eu, não.

Mas reconheci que a história é comovente. Jon Voight é um boxeador peso-pesado que lesiona o cérebro de tanto levar jabs, uppercuts, cruzados e ganchos. Tem de abandonar os ringues no auge, e se entrega ao jogo e à bebida. Arruína-se financeiramente, a mulher, uma jovem Faye Dunaway, separa-se dele, todos o consideram um fracasso, menos o filhinho de oito anos, que o venera e o chama de Campeão.

O eixo do filme é a relação entre o pai e o filho. O curioso é que o Jon Voight de verdade, não o personagem, enfrentou problemas com a filha, que, você sabe, é ninguém menos do que a Angelina Jolie. Ela o acusava de ter abandonado a mãe (dela, claro), emburrou-se, não o procurou mais, levou seis anos para se falarem de novo. Uma vez, tentando a reconciliação, Jon decidiu elogiar a filha de Angelina durante uma cerimônia. No discurso, chamou-a de Shakira. Angelina ficou fula: o nome da menina é Zahara. Para ver como Angelina é injusta. Bota na criança um nome desses e depois a culpa é do pai, se ele se confunde.

Mas o filme. Dias atrás, deparei com uma reprise na TV. Colhi a história pelo meio e não troquei de canal. Aí chegou o momento em que Jon se envolve numa briga, é preso, e conclui que o mundo tem razão: ele, de fato, se trata de um fracasso. Resolve entregar o filho à mãe, agora casada com um nababo. O menino não aceita, chora, implora para ficar com o pai. In extremis, Jon o esbofeteia e manda-o embora. Sente-se arrasado, mas acha que fez o que devia fazer. Sacrificou-se por amor ao filho. Só que o menino não consegue ficar longe do pai, e tanto insiste, tanto clama pelo Campeão, que Faye o leva de volta para casa. Na cena do reencontro, o menino, vestido com apuro, o cabelo loiro bem penteado, carrega uma malinha que o torna a imagem do desamparo. Acha o pai parado ao pé de uma arquibancada vazia de estádio, deprimido, cabisbaixo. Então, o pai ergue a cabeça. E eles se avistam. Caminham vacilantes um para o outro. Param a metro e meio de distância. Encaram-se. Abraçam-se, enfim, e juram jamais se separar. E eu, aboletado no sofá da sala, sinto uma bola de sentimentos se formando no meu peito, e a bola escala até a garganta, e logo me embaça o olhar, e percebo que, maldição!, não vou conseguir me controlar, e as lágrimas já me despencam rosto abaixo, e eu choro sem pudor, feito uma bandeirante adolescente.

Depois de ter filhos, a gente fica suscetível a dramas infantis. Que saudade do David durão do longínquo desfecho dos anos 70.


David Coimbra


Zero Hora 23/10/09

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Bolsa


Bolsa de mulher


Você seria capaz de dizer tudo que tem em uma bolsa de mulher ?
O básico é fácil: maquiagem, perfume, absorvente, carteira, celular, remédios para dor de cabeça e cólicas.

Mas coisas inéditas e inusitadas podem completar a lista. Algumas não saem sem sua água mineral ou suco, uma barra de cereais, biscoitinhos, balinhas.

Perguntei para algumas mulheres e encontrei também na lista alicates para fazer as unhas, esmaltes, tesoura, grampeador, canetas diversas, caderninho de anotação, carnês de pagamento das mais variadas lojas, preservativos, calcinha extra, creme para as mãos e muito mais.

Outra coisa interessante é a troca de bolsas, mulher troca a bolsa para combinar com a roupa ou sapato, para dar um estilo novo ao visual. Temos tantas bolsas quanto possuímos sapatos, ou quase. Pelo menos uma de cada cor básica. Não esqueça que bege não é marrom, que pode ser claro, escuro, café, ocre e muitos outros matizes. É difícil combinar a bolsa com precisão.

Não resistimos a uma oferta e as bolsas costumam aparecer em todas as liquidações e variando o tamanho também, outro requisito básico. Particularmente não gosto de bolsa muito grande porque costumo ocupar todo o espaço e fico com dor nas costas, ainda mais que na minha bolsa sempre tem livros. No plural, afinal não costumo ler um só de cada vez.

Não gosto das muito pequenas também, pois o meu básico vai além do celular e da carteira, preciso do caderninho de anotações para algum eventual assunto que não posso esquecer. Isso me faz usar duas bolsas às vezes, a titular e uma de tecido para os livros e lanche. Não sou a única, muitas mulheres usam duas bolsas, é comum.

Uma amiga que já foi assaltada carrega spray de pimenta, e um aparelho que dá choque. Perguntei se ela não tem medo de machucar alguém no susto, achando que é assalto. Ela diz que não, azar de quem tiver atitude suspeita. Isso ia muito bem, até que um namorado novo resolveu fazer uma surpresa para ela e agarrou-a na chegada de casa. Quase ficou cego e ainda com a maior dor nas partes íntimas.

O namoro não terminou, mas tenho certeza que ele morre de medo dela. Tentei convencê-la de que isso não era bom em uma relação. Ela riu e disse que homem bom é homem constrangido. Sei lá se é brincadeira ou não, essa eu não arrisco contrariar.

Ana Mello


http://www.sortimentos.com/gente/ana_mello-091019-bolsa-de-mulher.htm

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Sabedoria


Uma vez dei de costados com uma sinagoga. Estava lotada de judeus e de curiosos. Ali na Barros Cassal.
Falava no palco um rabino.
E disse o rabino que o sonho do homem se resume em três coisas: ser rico, ser forte e ser sábio.
E continuou o rabino: o homem quer ser forte, mas pensa que ser forte é dominar os outros. Engana-se, ser forte é dominar-se a si próprio.

Prosseguiu o rabino: o homem quer ser sábio, mas imagina que ser sábio é abeberar-se da cultura dos livros, dos ensinamentos que os sábios nos legaram pela escrita. Quando, na verdade, ser sábio é outra coisa: ser sábio é aprender com cada pessoa que se encontra na vida.

E terminou o rabino: o homem quer ser rico, mas não sabe o homem que ser rico não é amealhar toda a riqueza, ganhar e juntar todo o dinheiro que se possa. Ser rico, acrescentou por fim o rabino, é contentar-se com o que se tem.

Esta é a sabedoria, este é o jeito de ser feliz: mostrar-se satisfeito com o que se possui. E não querer se tornar feliz desejando aquilo que não se conseguiu ou não se pode conseguir.
Venham por mim.



Paulo Sant'Ana

Zero Hora

Idades


Contente-se com o que tem

O negócio é o seguinte: é difícil, mas é também incrivelmente fácil, ser feliz.
Mais difícil vai ser eu explicar isso que escrevi acima.
Por exemplo, não pode ser feliz uma pessoa que tem 50 anos e viva dizendo que gostaria de voltar à idade de 30 anos. Não pode ser feliz uma pessoa assim. No entanto, se esta ou qualquer pessoa contentarem-se com a idade que têm, serão felizes. Até mesmo porque de que adianta não estar contente com a idade que se tem? Nenhuma força científica pode mudar a idade que a pessoa tem.

Pois bem, acabei prescrevendo aos meus leitores uma receita para ser feliz: estar satisfeito com a idade que tiver.

Quem é jovem não tem nada que estar desejando ser mais velho. Quem é velho comete uma imbecilidade julgando que não é feliz por não ser jovem.
A idade que a gente tem é a idade que a gente tem e... pronto. O negócio é fazer força para ser feliz com ela.
A gente tem de ter orgulho da idade que tem: o jovem por não ser velho e o velho por ter já sido jovem.

....

Paulo Sant'Ana

Zero Hora 20/10/09

domingo, 18 de outubro de 2009

Menino azul


















Imagem: Christophe Gilbert

O menino azul

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
— de tudo o que aparecer.
O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo

que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses

pode escrever
para a Ruas das Casas,

Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)

Cecilia Meireles

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Sucesso


“Dedicação é a capacidade de se entregar à realização de um objetivo. Não conheço ninguém que tenha progredido na carreira sem trabalhar pelo menos doze horas por dia nos primeiros anos. Não conheço ninguém que conseguiu realizar seu sonho sem sacrificar sábados e domingos pelo menos uma centena de vezes. Da mesma forma, se você quiser construir uma relação amiga com seus filhos, terá de se dedicar a isso, superar o cansaço, arrumar tempo para ficar com eles, deixar de lado o orgulho e comodismo. Se quiser um casamento gratificante, terá de investir tempo, energia e sentimentos nesse objetivo.


O sucesso é construído à noite! Durante o dia você faz o que todos fazem. Mas, para conseguir um resultado diferente da maioria, você tem de ser especial. Se fizer igual a todo mundo, obterá os mesmos resultados. Não se compare à maioria, pois, infelizmente, ela não é modelo de sucesso. Se você quiser atingir uma meta especial, terá de estudar no horário em que os outros estão tomando chope com batatas fritas. Terá de planejar, enquanto os outros permanecem à frente da televisão. Terá de trabalhar, enquanto os outros tomam sol à beira da piscina. A realização de um sonho depende da dedicação.


Há muita gente que espera que o sonho se realize por mágica. Mas toda mágica é ilusão . E ilusão não tira ninguém do lugar onde está. Ilusão é combustível de perdedores.”


Roberto Shinyashiki

domingo, 11 de outubro de 2009

Mar Salgado

Ó Mar Salgado

Fernando Pessoa não se contentava só com a sua vida. Tinha de criar outras, e criou. Inventou pessoas, deu-lhes nomes, biografias e gostos próprios. Eram todos poetas, cada qual com seu estilo de versejar. Publicaram livros, granjearam admiradores, fizeram sucesso. Eram os seus “heterônimos”. Não é o mesmo que pseudônimo. Pseudônimo é um nome falso. Um autor escreve algo e publica sob assinatura diferente. Simples. Heterônimo é mais sofisticado. Hetero vem do grego, e quer dizer “outro”. Fernando Pessoa, ao criar um heterônimo, criava outro indivíduo. Alguns até morrer, morriam. Um deles, chamado Ricardo Reis, não morreu. Ou, pelo menos, não teve a data da sua morte estabelecida por Fernando Pessoa. Saramago encarregou-se disso ao escrever o romance “O ano da morte de Ricardo Reis”. Assim, um dos heterônimos de Fernando Pessoa sobreviveu a Fernando Pessoa.

O poeta mesmo, de carne, osso, óculos e bigodinho, o chamado “ortônimo”, morreu em 1935, aos 47 anos de idade. Nas horas derradeiras, ele chamava o nome de seus heterônimos. Fico imaginando a cena entre poderosa e comovente: o poeta clamando pela presença dos poetas que ele tinha inventado. Mas, no último momento, Fernando Pessoa não chamou por ninguém, real ou imaginário. Exalou o suspiro derradeiro proferindo uma enigmática frase em inglês:

– I know not what tomorrow will bring.

“Eu não sei o que o amanhã trará”.

Justo Fernando Pessoa, que dizia que a língua portuguesa era a sua pátria, como bem lembrou Caetano Veloso em um de seus clássicos.

Seis meses antes de proferir esta frase misteriosa, Fernando Pessoa escreveu um poema, que, como a frase e como os seus heterônimos, se presta a várias interpretações. O título é “Mar Português”:

Ó, mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

Leia e releia para apreciar a genialidade dos versos, para beber de todas as suas possibilidades. Já encontrei alentados textos com exegeses desta poesia imortal. Eu aqui tenho o meu naco preferido. É seu trecho mais célebre, no qual Pessoa pergunta se valeu a pena tamanho sacrifício, para em seguida ele mesmo responder que tudo vale a pena, se a alma não é pequena.

Portanto, o choro das mães pelos filhos que se perderam no oceano, os filhos que rezaram em vão pelo retorno de seus pais, as noivas que não se casaram porque os noivos jamais voltaram, tudo isso valeu a pena para que Portugal realizasse o sonho de conquistar o mar. É um canto à ousadia, à aventura, uma ode ao inconformismo, um elogio a quem faz.

E isso é o mais importante: fazer.

Sou sempre a favor de fazer. Erros podem ser cometidos? Que sejam enfrentados, que se tente resolvê-los, desde que se faça. Quem é contra a realização da Copa do Mundo no Brasil, quem é contra a realização da Olimpíada no Rio de Janeiro, é contra fazer. Poderia eu argumentar que a Copa e a Olimpíada gerarão empregos e melhorarão a infraestrutura do país; poderia argumentar que o dinheiro que será investido nos eventos não seria investido em Educação e Saúde, se os eventos não ocorressem; poderia argumentar que a corrupção pode ser controlada, se se quiser. Poderia argumentar tudo isso. Mas o que mais me incomoda é que as pessoas simplesmente não querem fazer. É a inação, a apatia, a falta de ousadia. A pequenez. O medo pode se transformar em excesso de prudência, e o excesso de prudência pode se transformar em paralisia. Pode-se passar a vida inteira assim, a não fazer. Uma vida pequena, uma alma pequena. Aí, é claro, nada vale a pena.


David Coimbra

Zero Hora 10/10/09

sábado, 10 de outubro de 2009

Felicidade


FELICIDADE REALISTA

De norte a sul, de leste a oeste, todo mundo quer ser feliz. Não é tarefa das mais fáceis. A princípio, bastaria ter saúde, dinheiro e amor, o que já é um pacote louvável, mas nossos desejos são ainda mais complexos.


Não basta que a gente esteja sem febre: queremos, além de saúde, ser magérrimos, sarados, irresistíveis. Dinheiro? Não basta termos casa própria, carro novo, a comida e o cinema: queremos a piscina olímpica, a bolsa Louis Vuitton e uma temporada num spa cinco estrelas. E quanto ao amor? Ah, o amor... não basta termos alguém com quem podemos conversar, dividir uma pizza e fazer sexo de vez em quando. Isso é pensar pequeno: queremos AMOR, todinho maiúsculo. Queremos estar visceralmente apaixonados, queremos ser surpreendidos por declarações e presentes inesperados, queremos jantar à luz de velas de segunda a domingo, queremos sexo selvagem e diário, queremos ser felizes assim e não de outro jeito. É o que dá ver tanta televisão. Simplesmente esquecemos de tentar ser felizes de uma forma mais realista. Por que só podemos ser felizes formando um par, e não como ímpares? Ter um parceiro constante não é sinônimo de felicidade, a não ser que seja a felicidade de estar correspondendo às expectativas da sociedade, mas isso é outro assunto. Você pode ser feliz solteiro, feliz com uns romances ocasionais, feliz com três parceiros, feliz sem nenhum. Não existe amor minúsculo, principalmente quando se trata de amor-próprio.


Dinheiro é uma benção. Quem tem, precisa aproveitá-lo, gastá-lo, usufruí-lo. Não perder tempo juntando, juntando, juntando.


Apenas o suficiente para se sentir seguro, mas não aprisionado. E se a gente tem pouco, é com este pouco que vai tentar segurar a onda, buscando coisas que saiam de graça, como um pouco de humor, um pouco de fé e um pouco de criatividade. Ser feliz de uma forma realista é fazer o possível e aceitar o improvável. Fazer exercícios sem almejar passarelas, trabalhar sem almejar o estrelato,amar sem almejar o eterno. Olhe para o relógio: é hora de acordar.

É importante pensar-se ao extremo, buscar lá dentro o que nos mobiliza, instiga e conduz, mas sem exigir-se desumanamente. A vida não é um game onde só quem testa seus limites é que leva o prêmio. Não sejamos vítimas ingênuas desta tal competitividade. Se a meta está alta demais, reduza-a. Se você não está de acordo com as regras, demita-se. Invente seu próprio jogo.

Martha Medeiros

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Herói


imagem: http://images.google.com.br

Receita de herói

Tome-se um homem feito de nada
Como nós em tamanho natural
Embeba-se-lhe a carne
Lentamente
De uma certeza aguda, irracional
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois perto do fim
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim
Serve-se morto.

(Reinaldo Ferreira em "Portos de Passagem"

Reflexões

1000 imagens
Os pobres

Aí vêm pelos caminhos,
Descalços, e pés no chão,
Os pobres que andam sozinhos,
Implorando compaixão.

Vivem sem cama e sem teto,
Na fome e na solidão:
Pedem um pouco de afeto,
Pedem um pouco de pão.

São tímidos? São covardes?
Têm pejo? Têm confusão?
Parai para os encontrardes,
E dai-lhes a vossa mão!

Guiai-lhes os tristes passos!
Dai-lhes, sem hesitação,
O apoio de vossos braços,
Metade de vosso pão!

Não receeis que, algum dia,
Vos assalte a ingratidão:
O prêmio está na alegria
Que tereis no coração.

Protegei os desgraçados,
Órfãos de toda a afeição:
E sereis abençoados
Por um pedaço de pão...

Olavo Bilac