terça-feira, 29 de setembro de 2009

Amar


DA ARTE DE AMAR

Se queres sentir a felicidade de amar,
esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.

Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo
Porque os corpos se entendem,
mas as almas não.

Manuel Bandeira

De que são feitos ?


De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças...

Cecília Meireles

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Uma irmã linda, outra feia

Raquel e Lia eram irmãs. Raquel, que em hebraico significa “ovelha”, era linda; Lia, que em hebraico significa “gazela”, era feia. A história delas é narrada no Gênesis, o primeiro dos 73 livros da Bíblia. Ou seja: desde o princípio do mundo isso de haver uma irmã linda e outra feia na mesma família rende boas histórias.

Jacó, um dos patriarcas do povo hebreu, neto de Abraão, o fundador das três grandes religiões monoteístas, Jacó era primo dessas duas irmãs. O pai delas, tio de Jacó, chamava-se Labão. Nome estranho, certo, mas não menos do que Wianey.

Jacó, que não era bobo, apaixonou-se pela bonita. Pediu-a em casamento. Labão concordou, mas interpôs uma condição: Jacó teria de trabalhar de graça para ele durante sete anos. Jacó topou, donde se conclui que Raquel devia ser mesmo a mulher mais linda da Mesopotâmia. Depois de sete anos se esfalfando feito um subeditor no plantão de sábado, Jacó enfim viu chegar o dia do casamento. Sentia-se tão feliz com a ideia de se libertar e possuir a mulher amada que bebeu demais durante a festa. À noite, enquanto o noivo se abraçava aos convidados e dizia te considero pra caramba, Labão mandou que Lia, a feia, se enfiasse no leito conjugal. Quando Jacó chegou, meteu-se entre os lençóis e consumou o ato com Lia, balbuciando:

– Du é a minha brinzezinha, Raquel...

No dia seguinte... Ah, o dia seguinte... Todos os homens já experimentaram a medonha sensação que Jacó experimentou naquela manhã. Ao despertar, ele abriu os olhos pensando cara, como a vida é boa, virou-se para o lado e... WOLFREMBAER!!! O que é que aquele xis-bacon estava fazendo ali???

Jacó correu furioso até Labão, mas Labão era como a maioria dos comerciantes brasileiros: não aceitava devoluções. Jacó reclamou que havia sido enganado, e aí Labão veio com uma conversinha, explicou que era tradição casar a filha mais velha antes da mais nova e bibibi. Naqueles tempos em que não havia Engov, Jacó, decerto com a cabeça latejando, acreditou. Concordou em ficar com a feia, mas queria casar com a bonita também. Labão aceitou. Com uma condição:

– Vai ter que trabalhar outros sete anos de graça.

Jacó suspirou e topou. Essa Raquel devia ser mesmo uma côsa. Fico imaginando-a: uma mulher de pernas de louça e voz de leite condensado e... bem, você sabe. O fato é que, depois de mais sete anos suando como um moto-boy, Jacó se casou com Raquel.

Labão, mostrando afinal alguma generosidade, deu duas moças de presente às filhas. Não como criadas, apenas para lhes fazer companhia. Zilpa e Bila, chamavam-se elas. Nomes estranhos, sei, mas não menos do que Suélen.

Jacó, obviamente, preferia a bonita, e passava quase todas as noites com ela. Mas vez em quando decidia dar uma variada, dormia com Lia e, sempre que fazia isso, blup, Lia engravidava. Teve quatro filhos, um atrás do outro, enquanto Raquel, nada. Naqueles tempos a turma ainda estava na atividade de povoar a Terra e tudo mais. Assim, Jacó passou a admirar a fecundidade de Lia. Raquel, aflita, decidiu contragolpear. Deu sua dama de companhia Bila ao marido, que nela fez dois filhos: Naftali, ou “engenhoso”, e Dã. Algum gaiato pode achar que o menino se chamava Dã por ser meio abobado. Não: Dã quer dizer “julgamento de Deus”.

Nesse meio tempo, Lia, que não queria perder para a irmã, deu Zilpa a Jacó, e nela Jacó fez outros dois filhos de nomes interessantes: Gade, “vindo por acaso”; e Aser, “felicidade”.

Jacó, portanto, estava bem abastecido de filhos e mulheres. Mas ainda preferia a bela Raquel e praticamente só dormia com ela. Até que um dia o filho mais velho de Lia lhe trouxe algumas mandrágoras para comer. Nunca comi uma mandrágora, mas já li a respeito. Sei que as bruxas da Idade Média adoravam mandrágora, uma planta que tinha o apelido de “Maçã de Satã”. Seja. Acontece que Raquel gostava muito de mandrágora e pediu uma para Lia. Lia respondeu que lhe daria uma madragorinha, desde que pudesse passar mais uma ou duas noites com Jacó. Negócio fechado. E, claro, Lia engravidou. Mais dois filhos.

Nessa história, contada tanto no Gênesis como por Flávio Josefo, o que me espanta não é a capacidade parideira de Lia, a beleza de Raquel ou a astúcia de Labão. É a forma como as mulheres dispunham de Jacó. Eram mulheres do Oriente Médio, que viviam pouco depois do rei Hamurábi, isto é, há cerca de 3.500 anos. Deviam ser submissas, pois. Não eram. Ao fim e ao cabo, elas é que tomavam as decisões sobre o que era importante.

David Coimbra

Zero Hora 23/09/09

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Estações


VIDA E AS ESTAÇÕES

Eu queria que a vida fosse dividida em quatro estágios, mas que não acabasse nunca .


A infância é como a primavera. É pura novidade e um calor que não sufoca nem faz pensar bobagens. Tem uma inocência quase cafona, uma singeleza clássica, e traz no íntimo a certeza de que pela frente vem coisa boa. A gente quer que passe logo, mas sabe que nunca mais será tão protegido, a mordomia não será eterna. É quando as coisas acontecem pela primeira vez, é quando num arbusto verde vemos surgir alguns vermelhos, é surpresa, a primeira de uma série.
A adolescência é como o verão. Quente, petulante, libidinosa.
Parece que não vai haver tempo para fazer tudo o que se quer e o que se teme. É musical e fotogênica. Dúvidas, dúvidas, dúvidas em frente ao mar. Mergulha-se no profundo e no raso. Pouca roupa, pouca bagagem. Curiosidade. Vontade que dure para sempre, certeza de que passa. Noção do corpo. Festas e religião. Amor e fé.


A maturidade é como o outono. Um longo e instável outono, que alterna dias quentes e frios, que nos emociona e nos gripa. Há mais beleza e o ar é mais seco, porém é quando se colhem os melhores abraços. Ficar sozinho passa a não ser tão aterrorizante. Fugimos para a praia, fugimos para a serra, as idéias aprendem a se movimentar, a fazer a mala rápido, a trocar de rota se o desejo se impuser, e não é preciso consultar o pai e a mãe antes de errar. É o outono que tentamos conservar.


O inverno é como a velhice. Tem sua beleza igualmente, exige lã, bolsa de água quente, termômetro e uma janela bem vedada. O que não queremos que entre? Maus presságios. O inverno é frio como despedida de um grande amor, mas sabemos que tudo voltará a ser ameno. Queremos que passe, temos medo que termine. Ficar sozinho volta a ser aterrorizante. O inverno é branco, é cinza, é prata. É grisalho. E, de repente, também passa.


Eu queria que tudo fosse verdade, que a vida fosse assim dividida em quatro estágios que mais parecem estações do ano, mas que não acabasse, que depois do inverno viesse outra primavera, e outro verão, e outro outono, que nunca são iguais, mas sempre se repetem, sempre voltam, são tão certos quanto o sol e a lua, todo dia, toda noite.

Eu queria.

MARTHA MEDEIROS

sábado, 19 de setembro de 2009

Paciência


Paciência

Ah! Se vendessem paciência nas farmácias e supermercados... Muita gente iria
gastar boa parte do salário nessa mercadoria tão rara hoje em dia.
Por muito pouco a madame que parece uma "lady" solta palavrões e berros que
lembram as antigas "trabalhadoras do cais"... E o bem comportado executivo?
O "cavalheiro" se transforma numa "besta selvagem" no trânsito que ele mesmo
ajuda a tumultuar...
Os filhos atrapalham, os idosos incomodam, a voz da vizinha é um tormento, o
jeito do chefe é demais para sua cabeça, a esposa virou uma chata, o marido
uma "mala sem alça". Aquela velha amiga uma "alça sem mala", o emprego uma
tortura, a escola uma chatice.
O cinema se arrasta, o teatro nem pensar, até o passeio virou novela.
Outro dia, vi um jovem reclamando que o banco dele pela internet estava
demorando a dar o saldo, eu me lembrei da fila dos bancos e balancei a
cabeça, inconformado...
Vi uma moça abrindo um e-mail com um texto maravilhoso e ela deletou sem
sequer ler o título, dizendo que era longo demais.
Pobres de nós, meninos e meninas sem paciência, sem tempo para a vida, sem
tempo para Deus.
A paciência está em falta no mercado, e pelo jeito, a paciência sintética
dos calmantes está cada vez mais em alta.
Pergunte para alguém, que você saiba que é "ansioso demais" onde ele quer
chegar?
Qual é a finalidade de sua vida?
Surpreenda-se com a falta de metas, com o vago de sua resposta.
E você?
Onde você quer chegar?
Está correndo tanto para quê?
Por quem?
Seu coração vai aguentar?
Se você morrer hoje de infarto agudo do miocárdio o mundo vai parar?
A empresa que você trabalha vai acabar?
As pessoas que você ama vão parar?
Será que você conseguiu ler até aqui?
Respire... Acalme-se...
O mundo está apenas na sua primeira volta e, com certeza, no final do dia
vai completar o seu giro ao redor do sol, com ou sem a sua paciência...

Paulo Roberto Gaefke

Humilhação


Sobre humilhação

Durante uma vida a gente é capaz de sentir de tudo, são inúmeras as sensações que nos invadem, e delas a arte igualmente já se serviu com fartura. Paixão, saudades, culpa, dor-de-cotovelo, remorso, excitação, otimismo, desejo – sabemos reconhecer cada uma destas alegrias e tristezas, não há muita novidade, já vivenciamos um pouco de cada coisa, e o que não foi vivenciado foi ao menos testemunhado através de filmes, novelas, letras de música.

Há um sentimento, no entanto, que não aparece muito, não protagoniza cenas de cinema nem vira versos com frequência, e quando a gente sente na própria pele, é como se fosse uma visita incômoda. De humilhação que falo.

Há muitas maneiras de uma pessoa se sentir humilhada. A mais comum é aquela em que alguém nos menospreza diretamente, nos reduz, nos coloca no nosso devido lugar - que lugar é este que não permite movimento, travessia?. Geralmente são opressões hierárquicas: patrão-empregado, professor-aluno, adulto-criança. Respeitamos a hierarquia, mas não engolimos a soberba alheia, e este tipo de humilhação só não causa maior estrago porque sabemos que ele é fruto da arrogância, e os arrogantes nada mais são do que pessoas com complexo de inferioridade. Humilham para não se sentirem humilhados.

Mas e quando a humilhação não é fruto da hierarquia, mas de algo muito maior e mais massacrante: o desconhecimento sobre nós mesmos? Tentamos superar uma dor antiga e não conseguimos. Procuramos ficar amigos de quem já amamos e caímos em velhas ciladas armadas pelo coração. Oferecemos nosso corpo e nosso carinho para quem já não precisa nem de um nem de outro. Motivos nobres, mas os resultados são vexatórios.

Nesses casos, não houve maldade, ninguém pretendeu nos desdenhar. Estivemos apenas enfrentando o desconhecido: nós mesmos, nossas fraquezas, nossas emoções mais escondidas, aquelas que julgávamos superadas, para sempre adormecidas, mas que de vez em quando acordam para, impiedosas, nos colocar em nosso devido lugar.


Martha Medeiros

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Essa não é a sua vida

Roubar
Subtrair uma parte qualquer
Da metade do que não é nada
A não ser um pedaço qualquer
De alguém


Matar
Subitamente apagar dessa vida
Um pedaço que é nada mais
Que uma parte qualquer
Da metade do que não é nada
A não ser um pedaço qualquer
De alguém

Viver
Repetir todo o dia a tarefa
De ser um a mais
Uma parte qualquer da metade
Do que não é nada a não ser
Alguém

Morrer
Simplesmente sair dessa vida
E deixar para sempre de ser
Um a mais e de ser
Uma parte qualquer da metade
Do que não é nada
A não ser
Alguém
...
Sentir
Sente-se que a metade
De vinte por cento
Dos vinte milhões de mulheres
No mundo
Não sentem nenhum prazer

Saber
Sabe-se que o total das pessoas
Que sabem o que é o amor
É igual a metade
Dos que já não sabem
O que é amar

Falar
Fala-se que só metade
Dos homens que sabem falar
Realmente não falam aquilo
Que sentem e falam

Pensar
Pensa-se que uma parte
Daqueles que pensam
É só a metade dos vinte por cento
Que pensam naquilo
Que é bom para si

...
Papas da Língua



domingo, 13 de setembro de 2009

Lenço Branco

Imagem: metodistdosul.edu.br

Homenagem à Semana Farroupilha (13 a 20 de setembro)


Lenço Branco

Nascido de alma caudilha
- nem por isso menos franca -
Deus te deu essa cor branca
que até de noite rebrilha.
Lua do herói na coxilha,
por de eu for, onde eu ande
e sem que ninguém me mande
eu te canto, troféu mudo
que é puro neste Rio Grande!

Do pica-pau ao chimango
vai um pedaço de glória
e engarupo na memória
com um guascaço de mango
recuerdos de algum chatango
que no passado ficou.
Se eu sou assim como sou,
entonado e orgulhoso,
devo a ti, lenço glorioso,
que eu herdei do meu avô.

Das lágrimas de uma china
quando seu índio partia,
de uma lua que alumia
debruçada na campina,
de uma sanga cristalina
que murmurava merencórea,
do clarão de uma vitória
deste povo leal e franco
nasceste, meu lenço branco,
para bandeira de glória!

Teu gosto é andar voejando
entre guerreiros e lanças
e acalentar esperanças
entropilhadas em bando.
O futuro está chamando,
já cumpriste o teu ideal
porqe o Rio Grand eimortal
fez de ti o seu retrato:
oposto do maragato,
puro, atrevido e bagual!

Antonio Augusto Fagundes

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

India

Imagem: www.whala.com.br/tag/historia-india/

Dizem que foi o rei Manu quem outorgou prestígio divino às castas da Índia.
De sua boca brotaram os sacerdotes. De seus braços, os reis e os guerreiros. De suas coxas, os comerciantes. De seus pés, os servos e os artesãos.

E a partir de então construiu-se a pirâmide social, que na Índia tem mais de três mil andares.
Cada um nasce onde deve nascer, para fazer o que deve fazer. Em seu berço está a sua tumba, sua origem é o seu destino: sua vida é a recompensa ou o castigo que merecem suas vidas anteriores, e a herança determina seu lugar e sua função.

O rei Manu aconselhava a corrigir o mau comportamento: se uma pessoa de casta inferior escuta os versos dos livros sagrados, há que derramar chumbo derretido em seus ouvidos; e se os recita, há que cortar a sua língua. Estas pedagogias já não são aplicadas, mas até hoje quem sai de seu lugar, no amor, no trabalhou ou no que seja, corre o risco de enfrentar escarmentos públicos que poderiam matá-lo ou deixá-lomais morto que vivo.

Os sem-casta, um de cada cinco hindus, estão abaixo do mais baixo. São chamados de intocáveis, porque contaminam: malditos entre os malditos, não podem falar com os demais, nem caminhar seus caminhos, nem tocar seus copos ou seus pratos. A lei os protege, a realidade os expulsa. Qualquer um os humilha e qualquer um as viola, e é assim que as intocáveis acabam sendo tocáveis.

No final do ano de 2004, quando o tsunami atacou a Índia, os intocáveis se ocuparam recolhendo o lixo e mortos.
Como sempre.


Eduardo Galeano/ Espelhos

Vampiros

Imagem: Olavo Saldanha

Vampiros

Eu não acredito em gnomos ou duendes, mas vampiros existem. Fique ligado, eles podem estar numa sala de bate-papo virtual, no balcão de um bar, no estacionamento de um shopping. Vampiros e vampiras aproximam-se com uma conversa fiada, pedem seu telefone, ligam no outro dia, convidam para um cinema. Quando você menos espera, está entregando a eles seu rico pescocinho e mais. Este "mais" você vai acabar descobrindo o que é com o tempo.

Vampiros tratam você muito bem, têm muita cultura, presença de espírito e conhecimento da vida. Você fica certo que conheceu uma pessoa especial. Custa a se dar conta de que eles são vampiros, parecem gente. Até que começam a sugar você. Sugam todinho o seu amor, sugam sua confiança, sugam sua tolerância, sugam sua fé, sugam seu tempo, sugam suas ilusões. Vampiros deixam você murchinha, chupam até a última gota. Um belo dia você descobre que nunca recebeu nada em troca, que amou pelos dois, que foi sempre um ombro amigo, que sempre esteve à disposição, e sofreu tão solitariamente que hoje se encontra aí, mais carniça do que carne.

Esta é uma historinha de terror que se repete ano após ano, por séculos. Relações vampirescas: o morcegão surge com uma carinha de fome e cansaço, como se não tivesse dormido a noite toda, e você se oferece para uma conversa, um abraço, uma força. Aí ele se revitaliza e bate as asinhas. Acontece em São Paulo, Manaus, Recife, Florianópolis, em todo lugar, não só na Transilvânia. E ocorre também entre amigos, entre colegas de trabalho, entre familiares, não só nas relações de amor.

Doe sangue para hospitais. Dê seu sangue por um projeto de vida, por um sonho. Mas não doe para aqueles que sempre, sempre, sempre vão lhe pedir mais e lhe retribuir jamais.


Martha Medeiros

sábado, 5 de setembro de 2009

Amar


A CONJUGAÇÃO DO VERBO AMAR

Amar é liberar
as seivas secretas
que nos habitam.

E descobrir os favos
que se ocultam sobre a pele.

Amar é descumprir
os regulamentos de trânsito
ao longo das perimetrais do corpo.

E ser mordido pelos ventos
e lambido pelas chuvas.

Amar é plantar hortênsias
à beira dos vulcões.

É ter um mudo como intérprete
e um cego como guia.

Amar é vestir de lua nova
e iluminar todos os andares
do ser amado.

E colher as amargas vinhas
de um dilacerante abraço.

Amar é entregar-se à regência
da ópera dos ciúmes.

E reinar sobre vastas extensões
de quietude e euforia.

Amar é esquecer identidade
entre fronteiras de aflição.

É reinaugurar a vida
após mil tropeços e naufrágios.

Amar é eleger o ser amado
como seu templo e pelourinho.

É ser urgido pelos rituais das carícias
e tornar-se íntimo da solidão.


Luiz Coronel

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Escolha


Escolha


Eu te amo como um colibri resistente
incansável beija-flor que sou
batedora renitente de asas
viciada no mel que me dás depois que atravesso o deserto.
Pingas na minha boca umas gotas poucas
do que nem é uma vacina.
Eu uma mulher, uma ave, uma menina…
Assim chacinas o meu tempo de eremita:
quebras a bengala onde me apoiei, rasgas minhas meias
as que vestiram meus pés
quando caminhei as areias.

Eu te amo como quem esquece tudo
diante de um beijo:
as inúmeras horas desbeijadas
os terríveis desabraços
os dolorosos desencaixes
que meu corpo sofreu longe do seu.
Elejo sempre o encontro
Ele é o ponto do crochê.
Penélope invertida
nada começo de novo
nada desmancho
nada volto

Teço um novo tecido de amor eterno
a cada olhar seu de afeto
não ligo para nada que doeu.
Só para o que deixou de doer tenho olhos.
Cega do infortúnio
pesco os peixes dos nossos encaixes
pesco as gozadas
as confissões de amor
as palavras fundas de prazer
as esculturas astecas que nos fixam
na história dos dias

Eu te amo.
De todos os nossos montes
fico com as encostas
De todas as nossas indagações
fico com as respostas
De todas as nossas destilairias
fico com as alegrias
De todos os nossos natais
fico com as bonecas
De todos os nossos cardumes
as moquecas.

Elisa Lucinda

Familia


A Família

Família, família, um mar de afagos
e pendências antigas. A família é um barco.
Tormentos e ventos e um sobrenome nas quilhas.
Veleja o barco por distantes milhas.

Família é uma ilha. Um cardume de ciúmes
em torno das pedras que o tempo empilha.
Família não é um coral de anjos nem cães
em matilha. Família é gente. E gente fala,
cala, embala. E humilha. Família, crianças
correndo e uma lágrima no rosto da filha.

Um nome na lápide, uma foto da festa,
uma emoção que cada um compartilha.
E os potros do rancor quem encilha?
Que mistério sustém, que trave, forquilha?
Família sobrevive às separações e partilhas.

Família é uma ilha. Entre orquídeas e urtigas
por acaso é o amor que faz que prossiga?
Família é uma ilha. Sem ela estamos no mar
sem bússola, num mato sem trilhas.


Luiz Coronel

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Claro



Claro Desejo

Claro que vejo
Claro que sinto
Claro desejo
Claro que minto

Claro percebo
Claro aconteço
Claro placebo
Claro anoiteço

Claro é cedo
Claro é lindo
Claro é medo
Claro é findo

Claro escuro
Claro fecundo
Claro duro
Clarimundo

Wasil Sacharuk - agosto 2009

Momento



Desejo de não ser um herói e nem poeta

Desejo de não ser senão feliz e calmo

Desejo da volúpias castas e sem sombra

Dos fins de jantar nas casas burguesas.


Desejo manso das moringas de água fresca

das flores eternas nos vasos verdes.


Desejo dos filhos crescendo vivos e surpreendentes

Desejos de vestidos de linho azul da esposa amada.


Oh! não as tentaculares investidas para o alto

E o tédio das cidades sacrificadas.


Desejo de integração do cotidiano.


Desejo de passar em silêncio, sem brilho

E desaparecer em Deus - com pouco sofrimento

E coma ternura dos que a vida não maltratou.


Augusto Frederico Schmidt

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Negrinho do pastoreio

Imagem: Thais Linhares

Negrinho do Pastoreio



No tempo dos escravos, havia um estancieiro muito ruim, que levava tudo por diante, a grito e a relho. Naqueles fins de mundo, fazia o que bem entendia, sem dar satisfação a ninguém.


Entre os escravos da estância, havia um negrinho, encarregado do pastoreio de alguns animais, coisa muito comum nos tempos em que os campos de estância não conheciam cerca de arame; quando muito alguma cerca de pedra erguida pelos próprios escravos, que não podiam ficar parados, para não pensar bobagem... No mais, os limites dos campos eram aqueles colocados por Deus Nosso Senhor: rios, cerros, lagoas.


Pois de uma feita o pobre negrinho, que já vivia as maiores judiarias às mãos do patrão, perdeu um animal no pastoreio. Prá quê! Apanhou uma barbaridade atado a um palanque e depois, cai-caindo, ainda foi mandado procurar o animal extraviado. Como a noite vinha chegando, ele agarrou um toquinho de vela e uns avios de fogo, com fumo e tudo e saiu campeando. Mas nada! O toquinho acabou, o dia veio chegando e ele teve que voltar para a estância.


Então foi outra vez atado ao palanque e desta vez apanhou tanto que morreu, ou pareceu morrer. Vai daí, o patrão mandou abrir a "panela" de um formigueiro e atirar lá dentro, de qualquer jeito, o pequeno corpo do negrinho, todo lanhado de laçaço e banhando em sangue.


No outro dia, o patrão foi com a peonada e os escravos ver o formigueiro. Qual não é a sua surpresa ao ver o negrinho do pastoreio vivo e contente, ao lado do animal perdido.


Desde aí o Negrinho do Pastoreio ficou sendo o achador das coisas extraviadas. E não cobra muito: basta acender um toquinho de vela ou atirar num cano qualquer naco de fumo.


A Morte


A MORTE

Renasci muitas vezes, da profundeza
de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio
das eternidades que povoei com minhas mãos,
e agora vou morrer, sem nada mais, com a terra.

Não comprei um sítio no céu que vendiam
os sacerdotes, nem aceitei as trevas
que o metafísico manufaturava
para despreocupados poderosos.

Quero estar na morte com os pobres
que não tiveram tempo de estudá-la,
vivendo sob açoites dos que têm
o céu dividido e arrumado.

Tenho pronta minha morte, como uma roupa
que me espera, da cor que eu gosto,
da extensão que inutilmente procurei,
da profundidade que necessito.

Quando o amor gastou sua matéria evidente
e a lua consome seus martelos
em outras mãos de acrescentada força,
vem a morte apagar os sinais
que foram construindo tuas fronteiras.

Pablo Neruda 1964.

Inauguração do mundo



O DIA DA INAUGURAÇÃO DO MUNDO

O mundo estava pronto
ao findar do sexto dia.
Água e terra, lado a lado
na mais perfeita harmonia.

Então uma pedra falou
com sua voz um tanto aguda:
“Eu gostaria de andar!”
E Deus fez a tartaruga.

E depois uma montanha,
com sua voz trovejante,
pediu para ser bicho,
e Deus criou o elefante.

E a lua que se refletia
em águas claras, pacatas
disse que queria nadar
e se fez peixe de prata.

E quando a folhinha verde
expressou os sonhos seus
de saltitar entre os galhos
se tornou um louva-a-deus.

E as nuvens que cobriam
de branco o céu inteiro
resolveram se transformar
num rebanho de cordeiros.

E o sol, com pinta de rei
quis também sua mutação:
por ter uma juba dourada
Deus fez do Sol um leão.

E no seu galho uma flor,
com vozinha de opereta,
pediu que queria voar.
E Deus fez a borboleta.

E a estrela brilhante,
vendo a onda se elevar,
pediu para descer às águas
e hoje é “estrela do mar”.

E um anjo que estava perto
(até nem me lembro o nome),
gritou que queria ser Deus.
De castigo virou homem.


Luiz Coronel

Chimarrão


Chimarrão

Amargo doce que eu sorvo
Num beijo em lábios de prata.
Tens o perfume da mata
Molhada pelo sereno.
E a cuia, seio moreno,
Que passa de mão em mão
Traduz, no meu chimarrão,
Em sua simplicidade,
A velha hospitalidade
Da gente do meu rincão.

Trazes à minha lembrança,
Neste teu sabor selvagem,
A mística beberagem,
Do feiticeiro charrua,
E o perfil da lança nua,
Encravada na coxilha,
Apontando firme a trilha,
Por onde rolou a história,
Empoeirada de glórias,
De tradição farroupilha.

Em teus últimos arrancos,
Ao ronco do teu findar,
Ouço um potro a corcovear,
Na imensidão deste pampa,
E em minha mente se estampa,
Reboando nos confins ,
A voz febril dos clarins,
Repinicando: "Avançar"!
E então eu fico a pensar,
Apertando o lábio, assim,
Que o amargo está no fim,
E a seiva forte que eu sinto,
É o sangue de trinta e cinco,
Que volta verde pra mim.