sábado, 31 de julho de 2010

A música


Sem pedir licença,
insinua-se pelos cômodos,
invade os espelhos,
derrama suas jarras de luz.


Vejo-a
pelos canteiros da casa,
na nitidez dos bordados
de minha mãe,
no brilhar de tua íris
quando os deuses descem
para beber a insensatez
das águas.


Depois,
ela se transforma em seios,
goiabas,
espigas.


E nua, adormece,
enquanto a lua brinca
entre meus dedos
e lagartixas
passeiam pelas pedras do pátio...


Everardo Norões

Choque térmico


Uma pessoa fica duas horas jogando frescobol na beira da praia sob um sol africano: 38 graus. Terminada a partida, joga as raquetes para o alto e corre para um mar de temperatura siberiana, bem ao gosto dos pinguins. Resultado: choque térmico.

Você não precisa fazer a experiência: quem já teve um grande amor e perdeu de um dia para o outro sabe como é. Você passa meses, talvez anos ao lado de alguém que aquece suas noites, que a faz queimar, derreter. Não é um forno de micro-ondas: é seu namorado, que não precisa apertar botão nenhum para fazê-la arder, basta tocar no seu braço e temos um incêndio no quarteirão. Tudo é quente entre vocês: os olhares, os beijos e o resto, principalmente o resto. Vocês são pólvora, querosene, gasolina. Altamente inflamáveis. Imagine anos e anos nesse fogaréu, até que um dia ele telefona e diz que conheceu outra pessoa, que continua a gostar de você, mas como amiga.

Choque térmico. Você, que vivia de camiseta regata e minissaia, passa a usar blusa de gola rulê, casacão e luvas, e mesmo assim não para de tremer. Foi-se o calor. Você nunca o viu tão frio. Ele cruza com você numa festa e a cumprimenta com ar de quem já lhe viu em algum lugar, mas não lembra onde. Você liga para a casa dele e a ex-sogrinha querida diz que está sozinha em casa. Ao fundo você escuta Aerosmith a todo volume. Ou sua sogra está resgatando a adolescência perdida ou o cretino mandou dizer que não está. Você o espera na saída do trabalho. Você impõe sua presença. Você toca distraidamente no seu braço para ver se aciona a chama, mas entre ele e uma pedra de gelo, você colocaria ele num copo de uísque. Você ameaça se matar, marca hora e local, e fica sabendo que ele reagiu bem: disse que mandaria rezar uma missa. Abominável homem das neves.

Choque térmico. Você perde o seu amor, e com ele as labaredas, as faíscas, a transpiração que a fazia tomar três banhos por dia. Agora resta a solidão, o frigorífico, as águas do Pacífico. Você se sente nua em pleno Alaska.
Você planeja fazer cinco horas de aeróbica e depois se atirar de um barco num lago congelado, um suicídio mais que simbólico. Mas eis que surge um salva-vidas de 1 metro e noventa e a cara do Leonardo di Caprio quando for adulto. Ele convida para um vinho. Oferece um cobertor. Bota lenha na fogueira. Choque térmico à vista, outra vez. Olhe pra você, já começou a suar.

MARTHA MEDEIROS

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Das utopias

Homenagem ao grande poeta que nasceu em 30 de julho de 1906.

Imagem

Se as coisas são inatingíveis... ora!


não é motivo para não quere-las...


Que tristes os caminhos, se não fora


a magica presença das estrelas!

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Quimica



Sublimemos, amor. Assim as flores
No jardim não morreram se o perfume
No cristal da essência se defende.


Passemos nós as provas, os ardores:
Não caldeiam instintos sem o lume
Nem o secreto aroma que rescende.

José Saramago

domingo, 25 de julho de 2010

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre



Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.


Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.


Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.

Ricardo Reis
Heterônimo de Fernando Pessoa

A caminhada



Nessa mata ninguém mata
a pata que vive ali,
com duas patas de pata,
pata acolá, pata aqui.

Pata que gosta de matas
visita as matas vizinhas,
com as suas duas patas
seguidas de dez patinhas.

E cada patinha tem,
como a pata lá da mata,
duas patinhas também
que são patinhas de pata.


Sidónio Muralha

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Com licença poética


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.


Cargo muito pesado para mulher,
esta espécie ainda envergonhada.


Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.


Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.


Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.


Minha tristeza não tem pedigree,
Já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.


Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adelia Prado

terça-feira, 20 de julho de 2010

Amigos!


Há 2 espécies de chatos: os chatos propriamente ditos e ... os amigos, que são os nossos chatos prediletos.

Mário Quintana

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Discípulos de Eros

Imagem: Daria Jabenko

Os namorados
são transparentes
quando olhados
de frente
de lado
de perto
ou distante


são diamantes
amantes, amantes
amantes


dão-se as mãos
simplesmente
mentes e olhos
mentem versos
verdades várias


vôos
são pássaros
são peixes
imersos no mar
do amor
esquecidos
de tudo
de nada
de todos


jogam dados
do destino
cantam hinos
são apenas
lábios, lábias
sedução


sábios e vivos
inocentes
e meninos
enquanto amor
os domina
e ilumina.


José Eduardo Degrazia

O que diz a morte


Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os vir a mim, os que padecem;

E os que cheios de mágoa e tédio encaram
As próprias obras vãs, de que escarnecem...


Em mim, os sofrimentos que não saram,
Paixão, dúvida e mal, se desvanecem.
As torrentes da dor, que nunca param,
Como num mar, em mim desaparecem.


Assim a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso intérprete sagrado
Das cousas invisíveis, muda e fria,
É, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia.

Antero de Quental

domingo, 18 de julho de 2010

A verdade


A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava
Só trazia o perfil de meia verdade,
E a sua segunda metade
Voltava igualmente com meios perfis
E os meios perfis não coincidiam verdade...


Arrebentaram a porta.
Derrubaram a porta,
Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos.


Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual
a metade mais bela.


Nenhuma das duas era totalmente bela
E carecia optar.
Cada um optou conforme
Seu capricho,
sua ilusão,
sua miopia.


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Não dê opinião


Dar opinião faz mal. Não falo sobre TER opinião, e sim de emiti-la. Alguém aí vai dizer: olha quem falando, justo ele, que a todo momento dá opinião.

Não é verdade.

Escrevo muito acerca de muitas coisas, mas nem dou tanta opinião assim. E, se dou, importa-me menos a minha opinião e mais a forma como a expresso. Prefiro que alguém diga:

– Não concordo uma única lhufa contigo, mas o texto eu a-mei!

Do que:

– Concordo todas as lhufas contigo, mas o texto achei troncho.

Além disso, estou me esforçando bravamente para dar menos opiniões. É difícil. A todo momento solicitam minha opinião sobre algo. Sei que com você também é assim. Você é obrigado a votar, você é interrogado em pesquisas, você participa de interativas. Você lê um texto em um blog e ali em cima está escrito: “Comentários”. Quer dizer: estão instando-o a comentar o que leu. E, se você não comenta, você lê o que os outros comentaram. Aí fica com vontade de comentar também. De dar opinião. E isso faz mal.

Por quê?

Porque, ao expressar sua opinião, você a torna pública. As outras pessoas tomam conhecimento dela. Logo, você assume um compromisso com a sua opinião.

Você tomou partido.

Assim, os outros, que têm outras opiniões, diferentes da sua, não são contra a sua opinião: são contra você. E você é contra eles.

É isso que faz mal: atrelar-se à própria opinião como se fosse um dogma. Como se a sua opinião fizesse parte de você. Como se não fosse algo que você pudesse mudar quando bem entendesse. Você é uma vítima da coerência. Um subalterno da sua própria opinião. Alguém não concorda com ela e você fica fulo. Não debate a outra opinião, ataca a outra pessoa:

“Só uma besta ruminante como você para dizer isso!”

Ao que o dono da outra opinião também se enfurece. Com certa razão – ele foi chamado de burro. Ele reage. Chama-o de pústula, sacripanta, galfarro e beleguim.

Pronto. A amargura da discórdia envenenará seu sangue, se espalhará pelo seu corpo, contaminará sua alma.

Sua opinião lhe fez mal.

Você se expressa, se expressa, sente necessidade de se expressar, de desfraldar sua opinião para que o mundo a veja. Você quer ser crítico, você critica. Então, desenvolve o hábito de, como crítico, ver o mundo e as outras pessoas pelo lado ruim. Porque um crítico, na sua concepção, é alguém que procura os defeitos nas coisas e os expõe.

Como dar a sua opinião e aceitar a dos outros serenamente, quem sabe até ponderar a respeito? Como não ficar dependente da própria opinião? Como não se tornar uma pessoa azeda, que em tudo coloca uma vírgula e depois da vírgula um mas?

Não faço ideia. Você faz?

Dê aí a sua opinião.

David Coimbra

Zero Hora 16/07/2010

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Cogito


Eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do possível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.



Torquato Neto

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Por quê ?


Amor meu, minhas penas, meu delírio,
Aonde quer que vás, irá contigo
Meu corpo, mais que um corpo, irá um'alma,


Sabendo embora ser perdido intento
O de cingir-te forte de tal modo
Que, desde então se misturando as partes,
Resultaria o mais perfeito andrógino
Nunca citado em lendas e cimélios


Amor meu, punhal meu, fera miragem
Consubstanciada em vulto feminino,

Por que não me libertas do teu jugo,

Por que não me convertes em rochedo,

Por que não me eliminas do sistema
Dos humanos prostrados, miseráveis,


Por que preferes doer-me como chaga
E fazer dessa chaga meu prazer?

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 8 de julho de 2010

A raça dos desassossegados


À raça dos desassossegados pertencemos todos, negros e brancos, ricos e pobres, jovens e velhos, desde que tenhamos como característica desta raça comum, a inquietação que nos torna insuportavelmente exigentes com a gente mesmo e a ambição de vencer não os jogos, mas o tempo, este adversário implacável.


Desassossegados do mundo correm atrás da felicidade possível, e uma vez alcançado seu quinhão, não sossegam: saem atrás da felicidade improvável, aquela que se promete constante, aquela que ninguém nunca viu, e por isso sua raridade.


Desassossegados amam com atropelo, cultivam fantasias irreais de amores sublimes, fartos e eternos, são sabidamente apressados, cheios de ânsias e desejos, amam muito mais do que necessitam e recebem menos amor do que planejavam.


Desassossegados pensam acordados e dormindo, pensam falando e escutando, pensam ao concordar e, quando discordam, pensam que pensam melhor, e pensam com clareza uns dias e com a mente turva em outros, e pensam tanto que pensam que descansam.


Desassossegados não podem mais ver o telejornal que choram, não podem sair mais às ruas que temem, não podem aceitar tanta gente crua habitando os topos das pirâmides e tanta gente cozida em filas, em madrugadas e no silêncio dos bueiros.


Desassossegados vestem-se de qualquer jeito, arrancam a pele dos dedos com os dentes, homens e mulheres soterrados, cavando uma abertura, tentando abrir uma janela emperrada, inventando uns desafios diferentes para sentir sua vida empurrada, desassossegados voltados pra frente.


Desassossegados desconfiam de si mesmos, se acusam e se defendem, contradizem-se, são fáceis e difíceis, acatam e desrespeitam as leis e seus próprios conceitos, tumultuados e irresistíveis seres que latejam.

Desassossegados têm insônia e são gentis, lhes incomodam as verdades imutáveis, riem quando bebem, não enjoam, mas ficam tontos com tanta idéia solta, com tamanha esquizofrenia, não se acomodam em rede, leito, lamentam a falta que faz uma paz inconsciente.


Desta raça somos todos, eu sou, só sossego quando me aceito .


Martha Medeiros

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Poema inédito


O jogo é inventar a goleira
mais do que a bola.

Garagens são traves,
lápides são traves,
cercas são traves,
chinelos são traves.

O que pode ser levado
com uma mão,
adivinhado pelas pernas.

Postes de luz são traves,
placas são traves,
lixeiras são traves,
bancos são traves.

Marcar o chão numa linha imaginária,
daqui pra ali é o campo.
E o mundo não existe mais
fora do giz branco.

Um quarto está pronto a céu aberto.
Um quintal no meio da casa.
Uma rua cortando a praça.

Corra no jardim sonâmbulo,
pise a grama com raiva, raízes
são cadarços amarrados
nos tornozelos das árvores.

Há coices, quedas, uivos:
nada termina a vida,
essa explosão suspirada.

É um transe, a trave;
trânsito parado, feriado.
O defensor descansa
na tranca dos joelhos.
O pássaro voa de cabeça a cabeça,
descasca a chuva, espalha os cabelos.

A trave é montinho, formigueiro,
capuz de ciscos, ninhos.
Formigas transportam alimento
por dentro dos seus riscos.

Que seja capacete de moto,
um tijolo, um toco,
qualquer troco de mato e entulho.

Dez passos ao lado e uma altura infinita,
fazer endereço para receber cartas,
desenhar gol de letra.

Trave é o quadro-negro dos pés.
Caroço de brilho, queimadura de cometa.
Na praia, no calçadão, no descampado.
Tudo o que foi costurado pelo invisível
entre o corpo e uma porta.

Pedras são traves,
bambus são traves,
frutas são traves.
Até crianças são traves
para o adulto passar
de volta à infância.

Fabrício Carpinejar

terça-feira, 6 de julho de 2010

Colar de Carolina


Com seu colar de coral,
Carolina
corre por entre as colunas
da colina.


O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.


E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
põe coroas de coral nas colunas da colina.


Cecilia Meireles

Se


Se não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.

Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso...
Mas sê o melhor no que quer que sejas.

Pablo Neruda

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Pranto para comover Jonatan


Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

Adélia Prado

domingo, 4 de julho de 2010

O medo do menino


Que barulho estranho,
vem lá de fora,
vem lá de dentro?!

Que barulho medonho
no forro,
no porão,
na cozinha,
ou na despensa!...

Será fantasma
ou alma penada ?
Será bicho furioso
ou barulhinho de nada ?

E o menino olha
na escura escada
e não vê nada.


Travesseiro
E olha na vidraça
e uma sombra o ameaça.

Quem se esconde ?
Esconde onde?

Se vem alguém passo a passo
Na rua deserta
O medo aumenta.


Passos de gente de casa
Encolhe o medo.

Se somem vozes e passos
De gente de casa,
No ato, no quarto,
Vem o arrepio .

E o menino encolhe,
Fica todo enroladinho.


E se embrulha nas cobertas,
Enfia a cabeça no travesseiro
E devagar, devagarinho,
Sem segredo,
Vem o sono .


E some o medo.

Elias José

sábado, 3 de julho de 2010

Amor, Felicidade


Infeliz de quem passa no mundo,
procurando no amor felicidade:
a mais linda ilusão dura um segundo,
e dura a vida inteira uma saudade.

Taça repleta, o amor, no mais profundo
íntimo, esconde a jóia da verdade:
só depois de vazia mostra o fundo,
só depois de embriagar a mocidade...

Ah! quanto namorado descontente,
escutando a palavra confidente
que o coração murmura e a voz diz

percebe que, afinal, por seu pecado,
tanto lhe falta para ser amado,
quanto lhe basta para ser feliz!

Guilherme de Almeida

Fortalezas da llha de Santa Catarina


Os velhos marinheiros meus avós...
Para eles ainda não terminou a espantosa Era dos Descobrimentos.
Das construções com longos e intermináveis corredores
Que a lua vinha as vezes assombrar.
Nas casas novas não ha lugar para os nossos fantasmas!
E se acabarem as construções antigas,
A nossa História vai ficar sem teto!...

Mario Quintana