sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Eu





Eu, eu mesmo...
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. —
Eu...
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...
Que crianças não sei...
Eu...
Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei...
Eu...
Tive um passado? Sem dúvida...
Tenho um presente? Sem dúvida...
Terei um futuro? Sem dúvida...
A vida que pare de aqui a pouco...
Mas eu, eu...
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu...

Álvaro de Campos
(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Motivo da rosa



Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

Cecília Meireles.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Saudade





De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?


De quem é esta saudade,
De quem?


Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...


E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...


De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?



Gilka Machado

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Texturas



Não te preocupes em me decifrar,
sou costurada com a linha da ambigüidade,
vestida de discursos de calar.


Não procure em mim suas verdades
minha bainha não foi feita,
toco em todas as texturas.
Minha cor não foi eleita,
sou camaleão sem cura.

Sou verso de intuição,
pergunta possível,
tentativa de explicação.
Meu verso é repleto de possibilidades,
não possuo seqüência, não possuo métrica.


Sou cúmplice da dualidade,
rima anacrônica perdida na realidade.


Não te preocupes em me decifrar.



Gabriela Marcondes

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Passarinho



Canta, canta, passarinho,
na roseira do caminho,
na roseira em que te vi...
Canta, canta no teu ninho
- passarinho, passarinho,
canta alegre: “ti-tiu-í.


Dorme, dorme, passarinho,
no teu berço bom de arminho,
passarinho que sorri...


Dorme enquanto com carinho
- passarinho, passarinho,
tua Mãe vela por ti...
Cecília Meireles.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Superstição



Eu não sou supersticioso, mas por via das dúvidas não passo debaixo de escada. A desculpa de sempre é que estou sendo prudente, para evitar que caia uma lata de tinta na minha cabeça. Outro dia, um gato preto cruzou na minha frente. Saí correndo feito um louco, dei meia volta no gato e descruzei o nó. Vai saber. Não dá pra dar sorte ao azar.

Essas bobagens são crendices populares que não atingem um sujeito racional como eu, com curso superior completo e capacidade de reflexão. Mas, como diz o ditado, “no creo en brujas, pero que las hay, las hay”.

Tem muito jogador de futebol que só entra em campo com o pé direito e fazendo o sinal da cruz. Mais por hábito do que qualquer outra coisa, me acostumei a começar meu dia assim, saindo da cama como se estivesse pisando no gramado. Virou um costume. Aí, aconteceu que um certo dia levantei com o pé esquerdo e o Internacional perdeu um jogo decisivo. Talvez tenha sido só uma coincidência, mas me senti culpado.

Meu irmão me deu um trevo de quatro folhas. Dizem que dá sorte. Não consigo entender porque uma aberração da natureza poderia dar sorte. Pra não ser mal educado, guardei o presente no meio do livro da Martha Medeiros que estou lendo. Minha vida não teve maiores alterações, mas notei que o livro pulou para as primeiras posições na lista dos mais vendidos. Aproveitei e coloquei a plantinha, com toda sua força sobrenatural, dentro da minha carteira de dinheiro. Tenho grandes expectativas de que a mágica funcione e, no futuro, eu possa até mesmo entrar para o mercado financeiro. Minha mão já começou a coçar.

Entusiasmado com uma possível maré de boa sorte, comprei uma ferradura e um chaveiro de pé de coelho. São amuletos que trazem saúde, paz e felicidade, além de dinheiro, que não é tão importante quanto uma vida saudável, mas é quem paga a fatura do seguro saúde. E, com certeza, vai melhorar o meu ranking de investimentos no mercado financeiro.

Mesmo que você não leve a sério essas coisas, não custa nada tomar cuidado. Aí vão algumas dicas. Não abrir guarda chuva dentro de casa, nem deixar sapato virado de boca pra baixo. Espelho quebrado, 7 anos de azar. Sexta feira 13, é melhor nem sair na rua. Tem certos dias em que os astros estão de mau humor. Não me pergunte porque.

Eu, sinceramente, não acredito em nada disso. Apenas respeito e, por via das dúvidas, bato na madeira três vezes pra garantir a proteção. Não dá pra brincar com essas coisas.

Kledir Ramil

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Ricardo Macchi em seu melhor papel



A escalação de artistas em propaganda de TV é um recurso eficiente e legítimo, ainda mais quando bem utilizada, o que acontece quase sempre. Mas vez que outra eles pagam mico. Lembro que há muitos anos escrevi uma crônica chamada “Cachê vexame”. Faz tanto tempo, que nem a tenho mais em arquivo. Na época, ainda trabalhava com publicidade e citei casos de atrizes que andavam expondo sua vida íntima, como quando Gloria Pires confidenciou que o marido tinha caspa e Suzana Vieira revelou que usava dentadura. Não devia ser verdade e, se fosse, não seria demérito, mas elas poderiam ter evitado algumas piadas. E não acreditei quando vi outro dia a linda e talentosa Camila Pitanga dizendo que jamais seria escalada para grandes papéis se não tivesse trocado de desodorante.

No entanto, há uma nova tendência na utilização de artistas que pode parecer vexatória, mas não é. Mês passado entrou no ar um comercial de seguradora de veículos em que um ladrão desiste de roubar o carro ao perceber que Byafra está no banco de trás, com um microfone na mão, pronto para cantar. O ladrão põe as mãos nos ouvidos e se manda. E a propaganda do momento é o ator Ricardo Macchi, com seu 1m90cm, dizendo para a câmera o mesmo texto que o baixinho Dustin Hoffman, numa comparação cênica evidentemente desigual. O produto é um carro compacto, cujo slogan é “Não basta ser grande para ser bom” ou algo assim.

Byafra e Ricardo Macchi estariam passando vergonha? Duvido. Não conheço nenhum dos dois e pode ser que tenham aceitado a empreitada por questões financeiras e para voltar à mídia, já que andavam desaparecidos, mas há outros dois componentes a serem levados em consideração, e o bom humor é um deles. Óbvio que ambos estavam conscientes de que seriam satirizados, mas levaram fé no espírito de galhofa do brasileiro e apostaram que sairiam com a imagem inabalada. Ou abalada para melhor: em geral, aplaudimos quem não se leva tão a sério. Esse bom humor não é exigido apenas dos outsiders da fama: há pouco tempo, os galãs Reynaldo Gianecchini, Vladimir Brichta e Marcio Garcia toparam ser esnobados por uma estranha em prol de uma marca de margarina.

O outro componente é o da vaidade controlada. Não sei se Byafra e Ricardo Macchi são tão pavões, a ponto de não recusarem uma oferta de aparecer na TV, seja da forma que for, mas acredito que a vaidade deles seja do tipo normal, sem megalomania: eles não brigam contra a imagem pública que possuem, logo, não se estressam. O que importa é quem eles são por trás das câmeras, sujeitos provavelmente de bem com a vida.

Esse é o papel de Macchi no momento: mostrar que sua grandeza não está no seu 1m90cm, mas no desprendimento em saber brincar.


Martha Medeiros
Zero Hora 07/09/2011

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Loucura



Muita loucura é sabedoria divina
Para um olho inteligente.
Muita sabedoria, pura loucura.
Mas, como sempre,
A maioria domina:
Se você concorda, é boa gente.
Se nega, um perigoso sem cura.
Melhor prender com corrente.

Emily Dickinson

sábado, 10 de setembro de 2011

Outra face da mesma pessoa



Uma das mais preciosas lições que temos nos vem da Antiguidade: “À mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta”.

O que muito noto na vida é que as pessoas não são o que parecem.

Se eu tivesse de escrever um conto a respeito, inventaria um personagem humano que onde quer que fosse carregaria como sua sombra um leão.

Todos elogiavam aquela mulher como dona de muitos atributos, qualidades e virtudes. E o marido daquela mulher replicava a todos eles: “Vão viver com ela e vocês deixarão de ter essa impressão”.

Ser é uma coisa, parecer é outra bem diferente. Por exemplo, na minha rua, quando de minha infância, havia um homem que passava pelos diversos bares do bairro sem nunca entrar em nenhum deles para tomar um trago.

Todos achavam que se tratava de um homem de hábitos puros, sensato, cumpridor de seus deveres e ótimo chefe de família.

Foi se saber com o tempo que aquele homem, no recôndito de seu lar, era um alcoolista inveterado e que em meio a seus porres espancava largamente sua mulher e seus filhos.




Um homem aparentemente inofensivo, amável, atencioso pode na sua intimidade tornar-se um ser agressivo e intolerante.

As aparências enganam. O próprio chato é uma criatura que inicialmente se apresenta como alguém simpático e logo em seguida fica difícil de aturar.

Conheci, certa vez, um torturador que mostrava unhas feitas, tinha modos gentis e se dirigia a todos na rua com muita delicadeza. E, à noite, tomava conta de seu calabouço e despedaçava sua vítimas indefesas.

Isso tudo acontece porque as pessoas cuidam muito bem de sua aparência. E muitas delas tem um outro zelo mais profundo a respeito: tratam de moldar a sua aparência com tintas exatamente antípodas às de sua verdadeira personalidade.

Um homem que parece ser bom pode ser mau. E um que aparenta bondade pode ser munido de extrema crueldade.

Por isso é que muitas vezes dizemos a alguém: “Ué, não estou te conhecendo. Tu não me parecias ser assim. O que está havendo contigo?”.

É que parece que desconhecemos que um ser humano pode ter diversas faces: Hitler era pintor, Nero foi cantor e ator.

Tenhamos, pois, sempre em mente que o que é pode não parecer e o que parece pode não ser.

Um dos exemplos mais elucidativos dessa questão foi que notei que, sempre que saía nos jornais a notícia de que um pitbull ou um rottweiler estraçalhavam uma pessoa, o dono do animal, toda as vezes, declarava: “Não posso entender, ele era tão mansinho”.


Paulo Sant'Ana
Zero Hora 08/09/2011

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Faróis




Faróis distantes,
De luz subitamente tão acesa,
De noite e ausência tão rapidamente volvida,
Na noite, no convés, que conseqüências aflitas!
Mágoa última dos despedidos,
Ficção de pensar ...
Faróis distantes...
Incerteza da vida...
Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,
No acaso do olhar perdido...
Faróis distantes...
A vida de nada serve...
Pensar na vida de nada serve...
Pensar de pensar na vida de nada serve...
Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande.
Faróis distantes ...

Álvaro de Campos
(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

As uvas e o vento



...Tu perguntas o que a lagosta tece

Lá embaixo...
Com seus pés dourados.
Respondo que o oceano sabe.
E por quem a medusa espera,
em sua veste transparente?
Está esperando pelo
tempo, como tu.
Quem as algas apertam
Em seu abraço... perguntas...
Mais firme que uma hora e
Um mar certos? Eu sei.
Perguntas sobre a mesa
Branca do narval...
E eu respondo cantando como
Unicórnio do mar, arpoado, morre.
Perguntas sobre as plumas do rei
Pescador...
Que vibrou nas puras
Primaveras dos mares do sul.
Quero te contar que o oceano
Sabe isto: que a vida...
Em seus estojos de jóias,
É infinita como areia,
Incontável, pura; e o tempo,
Entre as uvas cor-de-sangue...
Tornou a pedra dura e lisa,
Encheu a água-viva de luz...
Desfez o seu nó, soltou
Seus fios musicais...
De uma cornucópia feia
De infinita madrepérola.
Sou só a rede vazia diante dos
Olhos humanos na escuridão...
E de dedos habituados à longitude
Do tímido globo de uma laranja.
Caminho, como tu, investigando
A estrela sem fim...
E em minha rede, durante
A noite, acordo nu.
A única coisa capturada
É um peixe...
Preso dentro do vento
Investigando a estrela sem fim...

Pablo Neruda

domingo, 4 de setembro de 2011

O amor morreu?



Alguns dizem que sim, que o amor morreu e quem o matou foi a emancipação feminina. Os sociólogos, entretanto, afirmam que o amor ficou mortalmente ferido durante a Primeira Guerra Mundial e acabou por ser morto na Segunda Grande Guerra. Acham eles que as estruturas essencialmente masculinas foram terrivelmente abaladas por essas duas grandes guerras.

A mulher deu vazão à sua ansia de liberdade e caminhou para a frente sem se deixar deter pelo jugo masculino. Os preconceitos abatidos pelo pensamento moderno impeliram-na a matar a sua sede de vida asfixiada durante seculos, pelo gineceu.

Não se trata de vingança, - dizem as mulheres - mas de desforra. Não somos inferiores, nem menos capazes, nem menos limitadas. Sempre fomos iguais aos homens e, para dizer a verdade, superiores, até. Eles é que não queriam como ainda não querem aceitar essa igualdade ou superioridade, por medo e comodismo.

A mulher de hoje é independente, não pede licença a ninguem para viver sua vida. Nem à familia, nem à sociedade, nem ao homem. Elas apenas vivem dentro dos limites da sua propria consciencia.

Mas isso não quer dizer que o amor morreu. Apenas não adianta salvar mais o romantismo. Aos poucos êle se esvai e um sentimento mais racional, mais realista e frio substitui o velho amor.

Há os que procuram salvar dos escombros uma restea dos antigos romances onde o toque indelevel dos namoros com calafrios e suspiros era necessario para a realização do verdadeiro amor.

Hoje já não são mais necessarias as faiscas da imaginação para um entendimento de alma. O temor da solidão e do futuro é uma realidade, o mesmo que persegue como sombra de morte os jovens da era atomica.

As mulheres - dizem os homens - jovens ou não, são frias nas relações sentimentais e não se interessam mais do que o necessario pelo que se chama cultura de massa.

Lenita Miranda de Figueiredo

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

No fim



No fim de tudo dormir.
No fim de quê?
No fim do que tudo parece ser...,
Este pequeno universo provinciano entre os astros,
Esta aldeola do espaço,
E não só do espaço visível, mas até do espaço total.

Álvaro de Campos
(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Dez coisas na frente do nenê




Um nenê de 10 meses de idade é assim: você o coloca sentadinho em frente a um balcão e, nesse balcão, espalha:

1. O mordedor de plástico que fica cheio de água gelada e que ele adora morder com seus dois únicos dentinhos que lhe cresceram na parte de baixo da boca e que fazem com que ele fique babando o tempo todo.

2. Bolacha Maria, a sua bolacha preferida e que não engasga.

3. A revista Superinteressante do pai, no caso o degas aqui, revista essa que é só o nenê pôr os olhos nela para agarrá-la e rasgar suas páginas e dilacerá-las e empapá-las de baba e amassá-la toda.

4. Uma mamadeira bem cheia de leite quentinho e delicioso e apetitoso.

5. O telefone celular de brinquedo que, quando o nenê aperta suas teclas, toca uma musiquinha que parece a do lacre azul do cachorrinho dos caminhões de gás, e o nenê vive apertando aquelas teclas, e aperta, e aperta sem parar, irritando seu torturado pai.

6. Um prato de feijão com massa ou de cáqui esmagado ou banana sem semente amassadinha com mamão, iguarias pelas quais ele suspira logo que as avista.

7. A bola de borracha que ele vive atirando nas coisas, fazendo supor que, no futuro, será um jogador profissional de nilcon.

8. O cachorrinho de pelúcia movido a pilha que anda e late e do qual o nenê tinha certo medo no início, mas no qual agora ele aprecia dar porrada, como se fosse para mostrar quem manda.

9. O paninho.

10. Uma faca.

Coloque tudo isso diante do nenê. O que ele vai pegar? Hm?

A resposta é:

A faca.

Sempre a faca.

Por que os nenês são assim???





David Coimbra