sábado, 30 de abril de 2011

Meditação transcendental




Para meditar,
o homus modernus ocidentalis
cruza as pernas
deixa as costas eretas
os braços relaxados
concentra a atenção num ponto
e, assim imóvel em
pensamento e ação,
liga a televisão.


Ulisses Tavares

terça-feira, 26 de abril de 2011

Ideias para ganhar seu voto



O deputado Raul Carrion se irritava com o uso de palavras estrangeiras no Estado.

Aí, o que ele fez?

Uma lei proibindo o uso de palavras estrangeiras no Estado.

Entendo o deputado. Imagine você ter o poder que ele tem, de fazer leis. Você não gosta de algo, vai lá e proíbe. Ou gosta, vai lá e obriga. Deve ser muito bom. MUITO bom. Eu, se fosse deputado, teria prontos diversos projetos de interesse da coletividade. Ou de interesse de parte da coletividade, sobretudo a formada por mim e meus amigos. Cito os 10 mais relevantes. Se você aprovar, talvez vote em mim:

1. Proibiria bares ou restaurantes ou afins de servirem chope ou cerveja quente. Chope ou cerveja, só tinindo, só quase gelados.

2. Proibiria terminantemente o emprego do celular na mesa de bar, incluindo aí o envio e recebimento de torpedos. Na mesa do bar, as pessoas seriam obrigadas a conversar com quem estivesse na mesa do bar, salvo casos de extrema necessidade, como ligar para o amigo a fim de saber como está o outro bar.

3. Proibiria carros com equipamento de som de boate.

4. As mulheres não poderiam mais, nunca mais!, usar calças sem fundilhos, as famigeradas (asc!) “saruel”.

5. As mulheres não poderiam mais usar tênis, salvo para a prática de esportes, desde que fizessem o indispensável contraponto com o short curto ou a legging apertada.

6. Os garçons não poderiam mais, nunca mais!, empilhar cadeiras sobre as mesas enquanto houvesse um único cliente no bar, salvo exceções, como um cliente que estivesse dormindo em cima do prato de sopa. O cliente, porém, não poderia ser acordado, coitado.

7. Proibiria a dança de paletó e gravata em casamentos. Dançar de paletó e gravata, só se for tango ou bolero. Melhor: proibiria que esposas e namoradas convidassem os respectivos maridos e namorados para “sair para dançar” em qualquer momento de suas vidas, para todo o sempre.

8. Proibiria a execução de axé, pagode, sertanejo e funk em todas as rádios.

9. Criaria a Associação dos Abstêmios Anônimos, entidade de caridade para ensinar a beber os pobrezinhos que não bebem.

10. Proibiria que as pessoas se insultassem por causa de futebol. Ou por causa de barbeiragens no trânsito. Ou por odiar ou amar o PT. Pensando bem, proibiria as pessoas de se insultarem. Salvo exceções, como se lhes fosse servido chope ou cerveja quentes.

Tenho aqui muitos outros projetos de igual interesse público. Eu seria muito mais feliz se pudesse fazer as leis que bem entendesse. Compreendo, portanto, o nobre deputado e não o critico, ainda que o projeto dele seja desperdício de energia e de dinheiro público, ainda que seja ingênuo, ainda que seja inútil, ainda que seja uma bobice, o compreendo. Eu faria igual.



David Coimbra



Zero Hora 22/04/2011

quinta-feira, 21 de abril de 2011

O mistério do sono



Um amigo desabafa comigo e diz que o único prazer que lhe resta é dormir.
Como pode ser bom dormir, penso com os meus botões, se quando se está dormindo nada se sente?
Que prazer é esse de alhear-se do mundo, mergulhar num sono que pode ser considerado uma morte passageira, uma fuga da vida?
Eu não tenho dúvida, aliás, de que os que procuram refugiar-se no sono estão fugindo de alguma coisa que só pode ser a vida.
Uma pessoa normal, que não esteja depressiva, só pode gostar do sono antes e depois de dormir.
Antes, como caminho, perspectiva e solução para o descanso. Depois, como dever de repouso cumprido.

Mas os depressivos detestam estar acordados, a vigília prolonga-lhes a aflição, o pesadelo de terem-se de encontrar com suas dificuldades.
O supremo ideal do depressivo é dormir e deixar para trás todas as suas preocupações. É só um adiamento.

Por sinal, vendo as crianças dormirem com aquela letargia, ocorre-me imaginar que as crianças dormem assim tão profunda e insistentemente porque não têm o que pensar, estão distantes de temer o futuro e não possuem ainda um passado para lamentar ou comemorar.
Por esse raciocínio, a vigília é própria dos que pensam no futuro e no passado, dos que têm do que se ocupar mentalmente.
E o sono, por conseguinte, é uma condição de paz e de tranquilidade.

Em estado de insônia ou fadiga, o homem se pune com as censuras que faz a si próprio, enquanto que, se adormecer, ele acalma a sua culpa.
O sono nada mais é, portanto, que um grande alívio.
Ao contrário, a vigília é um castigo. Manter-se acordado muitas vezes é autoinfligir-se uma condenação aflitiva, uma maneira de permanecer purgando as vicissitudes e as adversidades.
Nem dá para imaginar como seria a vida sem o sono, enfrentar o duro combate da existência sem nenhum intervalo provocaria uma existência cruciante. Ou a morte.



Do sono até a morte, o passo é pequeno. A natureza pode ter criado o sono para treinar as pessoas para a morte.
Quando não é crivado por sonhos, o sono é o nada, é o ingresso num vazio total de existência, um não ser, uma antivida, um armistício.
E, no entanto, o sono, por imposição natural, é um espaço de repouso físico e de folga para a consciência.
Como também o sono faz parte da vida, um homem de 60 anos terá passado 20 anos de sua vida dormindo. Parece, assim, um desperdício, mas a natureza deve ter tido razões sábias para obrigar o homem a dormir e para deixá-lo arrasado quando não consegue dormir.

E o que será que vem a ser um sono agitado ou a insônia, senão que a pessoa está se recusando a mergulhar no sono porque tem tantas coisas boas ou más para fazer na vida, que não poderia, assim, diante de tantos compromissos, ficar perdendo tempo a dormir.
Sobre o parentesco da morte com o sono, a melhor metáfora para mim é do compositor e jornalista Antônio Maria, que deixou para seu companheiro de quarto um recado escrito, antes de ir dormir: “Se eu estiver dormindo, deixa-me dormir. Se eu estiver morto, me acorda”.




Paulo Sant'Ana

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Páscoa




- Papai, o que é Páscoa?
-Ora, Páscoa é... bem... é uma festa religiosa!
-Igual ao Natal?
-É parecido. Só que no Natal comemora-se o nascimento de Jesus, e na Páscoa, se não me engano, comemora-se a sua ressureição.
-Ressurreição?
-É, ressurreição. Marta , vem cá !
-Sim?
-Explica pra esse garoto o que é ressurreição pra eu poder ler o meu jornal.
-Bom, meu filho, ressurreição é tornar a viver após ter morrido. Foi o que aconteceu com Jesus, três dias depois de ter sido crucificado. Ele ressuscitou e subiu aos céus. Entendeu?
-Mais ou menos... Mamãe, Jesus era um coelho?
-O que é isso menino? Não me fale uma bobagem dessas! Coelho! Jesus Cristo é o Papai do Céu! Nem parece que esse menino foi batizado! Jorge, esse menino não pode crescer desse jeito, sem ir numa missa pelo menos aos domingos. Até parece que não lhe demos uma educação cristã! Já pensou se ele solta uma besteira dessas na escola? Deus me perdoe! Amanhã mesmo vou matricular esse moleque no catecismo!
-Mamãe, mas o Papai do Céu não é Deus?
-É filho, Jesus e Deus são a mesma coisa. Você vai estudar isso no catecismo. É a Trindade. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.
-O Espírito Santo também é Deus?
-É sim.
-E Minas Gerais?
-Sacrilégio!!!
-É por isso que a ilha de Trindade fica perto do Espírito Santo?
-Não é o Estado do Espírito Santo que compõe a Trindade, meu filho, é o Espírito Santo de Deus. É um negócio meio complicado, nem a mamãe entende direito. Mas se você perguntar no catecismo a
professora explica tudinho!
-Bom, se Jesus não é um coelho, quem é o coelho da Páscoa?
-Eu sei lá! É uma tradição. É igual a Papai Noel, só que ao invés de presente ele traz ovinhos.
-Coelho bota ovo?
-Chega! Deixa eu ir fazer o almoço que eu ganho mais!
- Papai, não era melhor que fosse galinha da Páscoa?
-Era... era melhor,sim... ou então urubu.
-Papai, Jesus nasceu no dia 25 de dezembro, né? Que dia ele morreu?
-Isso eu sei: na Sexta-feira Santa.
-Que dia e que mês?
- (???)
Sabe que eu nunca pensei nisso ? Eu só aprendi que ele morreu na Sexta-feira Santa e ressucitou três dias depois, no Sábado de Aleluia.
-Um dia depois!
-Não três dias depois.
-Então morreu na Quarta-feira.
- Não, morreu na Sexta-feira Santa... ou terá sido na Quarta-feira de Cinzas? Ah, garoto, vê se não me confunde! Morreu na Sexta mesmo e ressuscitou no sábado, três dias depois!
-Como?
- Pergunte à sua professora de catecismo!
- Papai, porque amarraram um monte de bonecos de pano lá na rua?
- É que hoje é Sabado de Aleluia, e o pessoal vai fazer a malhação do Judas. Judas foi o apóstolo que traiu Jesus.
- O Judas traiu Jesus no Sábado?
- Claro que não! Se Jesus morreu na Sexta!!
- Então por que eles não malham o Judas no dia certo?
-Ai...

- Papai, qual era o sobrenome de Jesus?
-Cristo. Jesus Cristo.
-Só ?
-Que eu saiba sim, por quê?
-Não sei não, mas tenho um palpite de que o nome dele era Jesus Cristo Coelho. Só assim esse negócio de coelho da Páscoa faz sentido, não acha?
-Ai coitada!
-Coitada de quem?
-Da sua professora de catecismo!


Luiz Fernando Veríssimo.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Tipos inesquecíveis


Era elegante como um manequim de vitrine e ocupado como telefone de bicheiro.

Embora mentiroso como bula de remédio, mais enganador que boletim meteorológico e vagaroso como uma obra da prefeitura, era minucioso como um vendedor de imóveis e tão perigoso quanto um pastel de botequim.

De inteligência era tão quadrado quanto a frente de um carro inglês e sua ignorância era transparente como fatia de presunto em sanduíches.

Sob o ponto de vista moral, era mais sujo que qualquer rua do Rio e mais desmoralizado que o cruzeiro.

Sentindo-se tão inútil quanto um deputado honesto e mais abandonado que o plano para erradicar a seca, resolveu pôr fim à vida de maneira tão rápida quanto o governo aumenta os impostos.

Hoje é apenas uma saudade funda como o time do Olaria e seu nome está mais esquecido que promessa de vereador em época eleitoral.

Max Nunes

domingo, 17 de abril de 2011

Biografia


Quando sozinho, sofro.

com gente, finjo.

se amado, fujo.

amante, disfarço.

permanecendo, inquieto.

calado, penso.

pensando, calo.

tocado, tremo.

tocando, recuo.

vencedor, desinteresso.

vencido, odeio.

quase morto, vivo assustado.

quase vivo, morro de medo.


Ulisses Tavares

sábado, 16 de abril de 2011

A causa da chuva


Não chovia há muitos e muitos meses, de modo que os animais ficaram inquietos.

Uns diziam que ia chover logo, outros diziam que ainda ia demorar. Mas não chegavam a uma conclusão.

– Chove só quando a água cai do teto do meu galinheiro, esclareceu a galinha.

– Ora, que bobagem! disse o sapo de dentro da lagoa. Chove quando a água da lagoa começa a borbulhar suas gotinhas.

– Como assim? disse a lebre. Está visto que chove quando as folhas das árvores começam a deixar cair as gotas d’água que tem dentro.


Nesse momento começou a chover.

- Viram? gritou a galinha. O teto do meu galinheiro está pingando. Isso é chuva!

– Ora, não vê que a chuva é a água da lagoa borbulhando? disse o sapo.

– Mas, como assim? tornava a lebre. Parecem cegos? Não veem que é a água cai das folhas das árvores?


Millôr Fernandes

domingo, 10 de abril de 2011

A tática da bolsa


A Jussara estava a fim de um cara e bolou um plano para conhecê-lo. Ou para ele a conhecer. Um plano minucioso, que descreveu para as amigas como se fosse uma operação militar. Em vez de conquistar um reduto inimigo, Jussara conquistaria o cara, que se renderia ao seu ataque. Ela acreditava que, no amor como na guerra, planejamento era tudo.


Jussara sabia que José Henrique – o nome do cara era José Henrique – tinha dinheiro e não tinha namorada firme, duas precondições para seu plano valer a pena. Era bonito, era um intelectual (andava sempre com um livro embaixo do braço) e tinha hábitos regulares. Todos os dias saía do trabalho e sentava-se numa mesa de bar, sempre a mesma mesa, para comer uma empada e tomar uma cerveja (só uma, e ele não fumava nem tinha qualquer outro vício aparente) antes de ir pegar seu carro num estacionamento próximo. Geralmente bebia sozinho e ia direto para casa, onde morava com a mãe viúva.


O ataque, de acordo com a melhor tática militar, deveria ser de surpresa. Mas surpreendente apenas o bastante para ser inesquecível sem assustar o cara. A ideia da Jussara era que, no primeiro contato, ele já descobrisse tudo sobre ela. O que ele faria com esta informação dependeria do que viesse depois. Ou, como disse a Jussara, “dos desdobramentos”. Mas no primeiro instante ele teria que saber tudo a seu respeito. Como conseguir isto ?

Com a bolsa. As amigas se entreolharam. Com a bolsa? Com a bolsa. Jussara entraria no bar remexendo na sua bolsa, fingindo procurar alguma coisa com tanta concentração que esqueceria de olhar para frente e esbarraria no José Henrique, derramando todo o conteúdo da bolsa na mesa à sua frente, ou no chão ao seu lado.


– E o conteúdo da bolsa dirá tudo que ele precisa saber a meu respeito, entendem? Serei eu dentro da bolsa. Tudo que eu sou, tudo que eu gosto. Ele vai me ajudar a colocar as coisas de volta dentro da bolsa e em poucos minutos conhecerá minha alma e minha biografia. Jussara já sabia o que colocaria dentro da bolsa. Um bonequinho de pelúcia que certamente enterneceria o cara, mostrando seu coração bom e algo infantil. Envelopes com sementes, mostrando sua preocupação com o meio ambiente. E um livro, para ele saber que ela também lia. Mas precisava decidir: que livro? Estava aceitando sugestões. Poesia? Martha Medeiros? Karl Marx? Pornopopeia? O Pequeno Príncipe? Qual faria maior efeito? Escolheram um Saramago, desde que não fosse muito pesado.


E o encontro se deu. Todo o conteúdo da bolsa da Jussara caiu na frente do cara, que ajudou a botá-lo de volta, como previsto. Mas ele nem notou o livro e as outras coisas. Pegou um estojo de maquiagem da Jussara e disse: “Eu uso o mesmo blush!”.


A Jussara culpa seu fracasso numa falha que costuma frustrar as operações militares: reconhecimento insuficiente do terreno.


– Faltou pesquisa – lamenta.


Luis Fernando Verissimo

Zero Hora 10/04/2011

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Daltonismo


Olhe de novo:

Não existem brancos.

Não existem amarelos.

Não existem negros.

Somos todos arco-íris.

Ulisses Tavares

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Conteúdo





No toque, a troca.
No ato, o salto.
No esfrega, a entrega.
Na mão, o coração.
No rir, o repartir.
No sangue, o bumerangue.
Na ida, a vida.


Ulisses Tavares

Amém


Hoje acabou-se-me a palavra,

e nenhuma lágrima vem.

Ai, se a vida se me acabara também!


A profusão do mundo, imensa, tem tudo, tudo – e nada tem. Onde repousar a cabeça?

No além?


Fala-se com os homens, com os santos,

consigo, com Deus. . .

E ninguém entende o que se está contando

e a quem. . .


Mas terra e sol, luas e estrelas

giram de tal maneira bem

que a alma desanima de queixas.

Amém.


Cecília Meireles

terça-feira, 5 de abril de 2011

As sem razões do amor


Eu te amo porque te amo.

Não, precisa ser amante

e nem sempre sabes sê-lo.


Eu te amo porque te amo.

Amor é estado de graça

e com amor não se paga.


Amor é dado de graça,

é semeado no vento,

na cachoeira, no eclipse.


Amor foge a dicionários

e a regulamentos vários.


Eu te amo

porque não amo bastante

ou demais a mim.


Porque amor não se troca,

não se conjuga

nem se ama.


Porque amor

é amor a nada,

feliz e forte em si mesmo.


Amor é primo da morte,

e da morte vencedor,

por mais que o matem (e matam)

a cada instante de amor.


Carlos Drummond de Andrade

domingo, 3 de abril de 2011

Canção do amor imprevisto


Eu sou um homem fechado.

O mundo me tornou egoísta e mau.

E a minha poesia é um vício triste,

Desesperado e solitário

Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,

Com o teu passo leve,

Com esses teus cabelos...

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender nada, numa alegria atônita…

A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil

Aonde viessem pousar os passarinhos.

Mário Quintana