domingo, 29 de junho de 2014

Costuras







"A gente podia poder costurar o tempo,

bordando em cima dos erros para que eles sumissem.

Costurar as pessoas que gostamos pertinho.

Costurar os domingos, um mais perto do outro.

Costurar o amor verdadeiro no peito de quem a gente ama.

Costurar a verdade na boca dos seres.


Costurar a saudade no fundo de um baú para que ela de lá não fuja.


Costurar a auto estima bem alto, pra que nunca ela caia.


Costurar o perdão na alma e a bondade na mão.


Costurar o bem no bem e o bem sobre o mal.


Costurar a saúde na enfermidade e a felicidade em todo lugar."

Janaína Cavallin)

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Ajudando africanos

Outro dia uma menina no fulgor dos seus vinte e poucos anos soprou um suspiro sabor tutti frutti no meu nariz e desabafou:
– Minha vida não está legal. Queria ir para a África, ajudar aquelas pessoas.
Fiquei pensando. Ela pretendia resolver seu problema existencial ajudando os necessitados. Interessante. É uma maneira caridosa de dar sentido à vida. Se vai funcionar, se a vida dela ganhará sentido com a solidariedade, isso é outra história. O que importa é a intenção. E a intenção dela não era ajudar qualquer necessitado, era ajudar africanos necessitados. Miséria é miséria em qualquer canto, verdade, mas a miséria dos africanos é ainda mais comovente, porque, afinal, eles são pretos e pobres, e no mundo inteiro é ruim ser preto e pobre.
Então, é muito nobre ajudar africanos. É mais charmoso, também. Ajudar pessoas na Vila Cruzeiro é uma coisa; ajudar pessoas na Somália, outra. Quem se interessaria pelos problemas da Vila Cruzeiro numa mesa de bar da Cidade Baixa? Agora, vá falar da Somália, aquele lugar distante e misterioso… Não há dúvida, ajudar os africanos tem suas recompensas, afora as da consciência apascentada.
Em todo caso, o que me interessou mesmo foi a forma que a garota encontrou de sublimar sua própria vida: ela queria, de alguma maneira, ser importante para os outros. Para alguém. O amor romântico exerce essa função. Não é por outro motivo que os caminhoneiros mais rudes vertem lágrimas na boleia quando ouvem Zezé di Camargo se esganiçar:“É o amor! Que faz eu lembrar de você e esquecer de mim!”. Zezé di Camargo, incrível!, definiu, senão o sentido da vida, a busca do sentido da vida: lembrar de você e esquecer de mim. Você só achará sentido na vida se se doar, seja para uma mulher de olhos tristes, seja para a tristeza da miséria africana.
Veja lá a Angelina e o Brad e tantos artistas ricos e famosos de Hollywood, veja o Bono, o velho George Harrison, que não está mais entre nós, e muitos, muitos outros célebres no mundo todo:eles, aparentemente, chegaram ao topo, mas, do topo, olhando para baixo, sentem a necessidade de ajudar os outros, não raro os pobres africanos, como a minha jovem amiga. A necessidade de dar. De se dar. Os outros. O mais importante são os outros. Quando é que vamos aprender isso?

David Coimbra

sábado, 14 de junho de 2014

Remédios

Eu tomo um remédio para controlar a pressão.

Cada dia que vou comprar o dito cujo, o preço aumenta.

Controlar a pressão é mole. Quero ver é controlar o preção.

Tô sofrendo de preção alto. 

O médico mandou cortar o sal. Comecei cortando o médico, já que a consulta era salgada demais.


Para piorar, acho que tô ficando meio esquizofrênico. Sério!
Não sei mais o que é real.


Principalmente, quando abro a carteira ou pego extrato no banco.
Não tem mais um Real.

Sem falar na minha esclerose precoce. Comecei a esquecer as coisas:
Sabe aquele carro? Esquece!


Aquela viagem? Esquece!


Tudo o que a "presidenta" prometeu? Esquece!

Podem dizer que sou hipocondríaco, mas acho que tô igual ao meu time:
- nas últimas.


Bem, e o que dizer do carioca? Já nem liga mais pra bala perdida...


Entra por um ouvido e sai pelo outro.

Faz diferença...


"A diferença entre o Brasil e a República Checa é que a República Checa tem o governo em Praga e o Brasil tem essa praga no governo"

" Não tem nada pior do que ser hipocondríaco num país que não tem remédio" ....

Luiz Fernando Veríssimo

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Regras







Li em algum lugar que há uma regra de decoração que merece ser obedecida: para onde quer que se olhe, deve haver algo que nos faça feliz.


Martha Medeiros

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Tempo






 Não há tempo consumido nem tempo a economizar.


 O tempo é todo vestido de amor e tempo de amar.


 O meu tempo e o teu, amada, transcendem qualquer 

medida.


 Além do amor, não há nada, amar é o sumo da vida.



Carlos Drummond de Andrade

O pé





Vi que ele olhava para os pés dela. Para um pé, na verdade.
O direito.
Olhei-o também. Bom pé. Pé magro, de aparência macia, com dedos em harmoniosa escadinha subindo do mingo frágil ao dedão encorpado mas jamais rombudo.
Isso de pé. Não sou dos fanáticos por pé. Aprecio belos pés, claro, mas os desgraciosos não são eliminatórios para mim. Dizem que a Naomi Campbell tem pés horríveis, e isso não me impede de admirar o trabalho dela. E a Xuxa, há quem garanta que ela só usa botas por vergonha dos pés. Será? Tenho pensado nisso, volta e meia.
De qualquer forma, eu e ele olhávamos agora para o pé direito dela. Estávamos à espera de mesas num restaurantezinho da orla catarinense, eu num canto, eles noutro. Eles formavam um casal de namorados, supus. Ele mais velho, ela na glória de seus vinte e poucos anos. Ela estava numa cadeira mais alta, ele ao lado, num banquinho humilde. Ela havia cruzado as pernas, a direita por cima da esquerda, e por isso seu pé direito balançava com indolência no ar.
Ele, não o namorado, o pé, ele estava calçado com uma sandália baixa, amarrada ao tornozelo. Subia e descia, subia e descia devagar, até que ele, o namorado, não pé, até que ele o colheu.
Com delicadeza, o namorado interrompeu o vôo suave do pé direito da namorada. Tomou-o com as duas mãos, pela sola da sandália e pela base da canela. A namorada, do alto, olhou sem muito interesse. O namorado, então, levou aquele pé aos lábios, como se fosse um cálice de vinho consagrado, e o beijou. Beijou-o profundamente, com os olhos fechados de devoção, aspirando-lhe o perfume, e depois o depositou de volta ao ponto de repouso. O namorado ficou ainda fitando o pé adorado, satisfeito, e ela, a namorada, encheu os pulmões de ar e sorriu, iluminada, sentindo-se uma deusa, sentindo-se uma rainha, e eu, do meu canto, pensei que, das coisas que um homem pode fazer na vida, raras são tão belas, tão poderosas, tão grandiosas do que fazer uma mulher sentir-se uma deusa, uma rainha, porque, naquele momento, ela estará se sentindo, inteira, o que de melhor ela é: uma mulher.
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O papagaio
Dia desses, me aborrecia numa sala de espera e, na TV pendurada na parede a minha frente, passava o programa matinal da Globo. Vi a apresentadora, a Ana Maria Braga, conversando com um papagaio de plástico. Era uma conversa fluente. O papagaio fazia ponderações, a humana contra-argumentava, tudo muito tranquilo, muito racional. Admirei profundamente a Ana Maria Braga naquele instante. Eu não conseguiria ser tão natural ao interagir com um papagaio de plástico. No Pretinho Básico, quando falo com algum dos personagens, fico meio sem jeito. Mas a Ana Maria Braga, não. A Ana Maria Braga levava o papagaio a sério. Percebi que ela se importava com as opiniões do papagaio e que ele, de alguma forma, era essencial para o desenvolvimento do programa.
Minha admiração, então, elevou-se da competência profissional da Ana Maria Braga para a criatividade da raça humana em geral. Imaginei os homens e mulheres que bolaram esse programa reunidos, anos atrás, e um deles propondo:
_ Que tal nós colocarmos no ar uma mulher conversando com um papagaio de plástico de manhã cedo, todos os dias?
E os outros socariam as próprias mãos, exclamando:
_ Boa ideia!
E o programa iria ao ar e faria o grande sucesso que faz.
Não é genial? Que percepção do gosto popular! Que sensibilidade!
Um papagaio de plástico. Jamais pensaria nisso. Lembro do ratinho Topo Giggio, que contracenava com o Agildo Ribeiro e cantava meu limão, meu limoeiro, meu pé de jacarandá. Não era como o papagaio da Ana Maria. Não, aquele era um programa para crianças. E o papagaio da Ana Maria não é um personagem com aventuras próprias, como o Topo Giggio. Mesmo assim, deu certo. O Big Brother dá certo aqui como em nenhum outro lugar, os Sarneys dão certo aqui há 50 anos, por aqui os funkeiros ficam ricos, por que não um papagaio de plástico conversando com uma senhora? O Brasil, de fato, é um país generoso.
David Coimbra