domingo, 29 de abril de 2012

Antepassado




Só te conheço de retrato,

não te conheço de verdade,

mas teu sangue bole em meu sangue

e sem saber te vivo em mim

e sem saber vou copiando

tuas imprevistas maneiras,

mais do que isso: teu fremente

modo de ser, enclausurado

entre ferros de conveniência

ou aranhóis de burguesia,

vou descobrindo o que me deste

sem saber que o davas, na líquida

transmissão de taras e dons,

vou te compreendendo, somente

de esmerilar em teu retrato

o que a pacatez de um retrato

ou o seu vago negativo,

nele implícito e reticente,

filtra de um homem; sua face

oculta de si mesmo; impulso

primitivo; paixão insone

e mais trevosas intenções

que jamais assumiram ato

nem mesmo sombra de palavra,

mas ficaram dentro de ti

cozinhadas em lenha surda.

Acabei descobrindo tudo

que teus papéis não confessaram

nem a memória de família

transmitiu como fato histórico

e agora te conheço mais

do que a mim próprio me conheço,

pois sou teu vaso e transcendência,

teu duende mal encarnado.

Refaço os gestos que o retrato

não pode ter, aqueles gestos

que ficaram em ti à espera

de tardia repetição,

e tão meus eles se tornaram,

tão aderentes ao meu ser

que suponho tu os copiaste

de mim antes que eu os fizesse,

e furtando-me a iniciativa,

meu ladrão, roubaste-me o espírito.

Carlos Drummond de Andrade



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