sábado, 26 de junho de 2010

Sapatos novos


A situação estava razoavelmente sob controle: se minha condição de extra mensalista do IAPC me sujeitava a um salário baixo, o cartão falso de estudante, que me permitia almoçar no Calabouço por dois cruzeiros, aliviava a barra. Uma vaga de quarto na pensão da rua Carlos Sampaio não custava muito. E ainda havia os trocados que pingavam da colaboração eventual no suplemento literário do Correio da Manhã ou do Diário de Notícias. O meu único terno, comprado a prestações num alfaiate da rua do Resende, estava pago. O problema grave no momento eram os sapatos, cujos solados gastos já me deixavam sentir diretamente no pé a aspereza das calçadas do Rio. Em bom português: estavam furados.
Por isso mesmo, não resisti ao ver, na vitrine de uma sapataria da Lapa, um par de sapatos por 150 cruzeiros. Maravilha! Hoje, após tantos cortes de zeros no cruzeiro e até a mudança do nome da moeda, será difícil para o leitor avaliar o preço desses sapatos. Mas eram baratos, sem dúvida alguma. Entrei, experimentei-os e decidi que devia comprá-los, embora estivessem um pouco apertados. Um pouco, foi o que disse a mim mesmo, porque aquela pechincha era minha salvação.
Estavam de fato muito apertados, tanto que, ao chegar à redação da revista do IAPC, onde trabalhava, ali na rua Alcindo Guanabara, meus pés ardiam em brasa. Com alívio, tirei-os dos pés e calcei de novo os sapatos furados que, providencialmente, trouxera comigo. Fui até o banheiro, molhei bem os sapatos novos e deixei-os ali, certo de que, quando secassem, estariam mais macios. Era verão e foi sob um sol de fogo que caminhei até o Calabouço para almoçar aquele dia. À tarde dei uma volta pelas livrarias, só pra ver os livros, e à noite tomei o meu cuba-libre com os amigos no então famoso Vermelhinho, em frente à ABI. Dormi pensando em meus sapatos novos.
Acordei pensando neles. Certamente ia poder calçá-los agora. Quase aflito, rumei para o IAPC, subi de elevador, abri a porta da repartição, dirigi-me ao banheiro onde deixara os sapatos sobre a pia. E lá estavam eles, secos, melhor dizendo: ressequidos, isto é, duros, rijos como casco de burro. Mesmo assim, tratei de calçá-los, o que só consegui com enorme esforço. "Pronto", disse, terminando de lhes amarrar o cordão. Meu pé soltava faísca espremido ali dentro. Senti que não conseguiria dar um passo. Só há um jeito, pensei, e fui logo à prática: bati violentamente com o pé calçado no chão para forçar o couro a alargar-se. Foi uma patada só e o sapato explodiu.




Ferreira Gullar

Um comentário:

  1. Boa noite, meu bem!!!
    Venho para deixar uma beijoca carinhosa!
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    E este poema para você

    "AMIGOS, ANJOS E FLORES

    Assim são os amigos...
    Assim são os amores...

    De tanto esperar... De tanto vagar... De tanto chorar...

    Hoje percebo que sozinha... Já não estou...
    E hoje ao despertar nesta linda manhã...
    Senti um gostoso aroma de flores...
    Senti a presença dos anjos...

    Novamente abro minha janela... Da alma e coração...
    E por ela vejo meus amigos...
    Que mesmo sendo do virtual...
    Apoiaram-me nas horas de solidão...

    Recebo sorrisos palavras de alento...
    E cercada de anjos percebo que...
    Sozinha eu nunca estarei...

    Hoje mais do que nunca confio...
    Na sabedoria extrema do Universo...
    Onde anjos de luz me guiam...

    Com toda a profundeza e nobreza...
    Da dádiva divina que é o amor...

    Eu tenho amigos poetas...
    Tenho amigos e amigas aqueles das horas incertas em dias de batalhas, "brigas"...
    Conto com amigos poetas!...
    Eles vêem em tudo amor...
    Não me aconselham, escutam são meus amigos...

    E ao clamor! Estão comigo e labutam (trabalhar duro e com perseverança)...

    Amigos poetas se calam...
    Me ensinam com a poesia as palavras as vezes falham...

    Harmonizam em melodia Na melodia poética dos versos e dos sentimentos...
    Nem tudo segue estética e se refazem nos "lamentos"

    Poetas escrevem das dores amores, da lua, do dia...
    falam de estrelas, de flores encantam, trazem alegria... "

    Desconheço a autoria.

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    SÔNIA SILVINO'S BLOGS

    VÁRIOS TEMAS & UM SÓ CORAÇÃO

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