segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O plastiquinho da ponta do cadarço


Li a matéria sobre os garis que ninguém vê. A Deise Nunes de uniforme laranja, varrendo a rua bem varridinha, e a turma nem bola. Certo. Mas e o cantor de churrascaria? Eis um solitário. Churrascaria lotada, 250 pessoas se lambuzando com salada de maionese, trinchando salsichões. O cantor de churrascaria aciona seu sintetizador. Dedilha um tchéin na guitarra. Ataca de Djavan:


— Fez a Via Láctea, fez os dinossaaauros…

Isso em poderosas caixas de som, a maior estridência. As pessoas no entorno ouvem o cantor de churrascaria, a quadra inteira ouve. Ninguém o vê. Pior: ninguém o escuta. Mal sabem que música ele está cantando. Só que um cantor de churrascaria obviamente tem pretensões artísticas. Imagino-o em casa, deitado de bruços na cama, compondo uma canção com a sua Bic.

Ele colocou todo o seu coração naquela música, todas as dores que sofreu por causa de um amor perdido, toda a alegria que sentiu ao encontrar um novo amor, tudo o que vai na alma do cantor de churrascaria está posto ali, na letra singela da sua composição.

Mas ele poderá enfim executá-la? Poderá tocá-la na maldita churrascaria? Não! O dono da churrascaria, os freqüentadores, os garçons, eles rejeitam experiências. Aceitam apenas Robertos, Erasmos, Chicos e Caetanos. A música do seu próprio cantor, ah, essa não, essa de jeito nenhum.

Humpf.

E o cara que faz o plastiquinho da ponta do cadarço, então? Já pensou no cara que faz o plastiquinho da ponta do cadarço? Não sei como se chama aquilo. É um canudinho de menos de centímetro, que aperta as pontas dos cadarços. Alguma vez você tentou enfiar os cadarços no sapato sem aquele troço? Impossível. É preciso lamber a ponta do cadarço para afiná-la, um nojo. E às vezes nem funciona.

O plastiquinho da ponta do cadarço é indispensável. Mas ninguém jamais pensa no cara que faz o plastiquinho da ponta do cadarço! Pois existe alguém que faz isso, quero informá-lo, prezado e indiferente leitor. Alguém que tem seus medos, suas dores, seus amores, seus sonhos, suas alegrias. E entre elas não está a do reconhecimento, não mesmo — ninguém nunca cogitou agradecer ao cara que faz o plastiquinho da ponta do cadarço pelo seu serviço inestimável.

Humpf, humpf.

Poderia encher aqui a página 3 com uma ode aos profissionais esquecidos. O trocador de lâmpadas de poste, o nosso amiguinho taxidermista… Enfim, não é só o gari que sofre. Não, não, não!


David Coimbra

ZH 23/05/2003

Um comentário:

  1. São tantos os de grande importância, e esquecidos...cita-los aqui levaria mos um dia inteiro.

    linda a sua postagem , um beijo!

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