quinta-feira, 9 de julho de 2009

O sacristão distraído



O pequeno Giuseppe Verdi era um dedicado sacristão da paróquia de Bussetto quando ocorreu talvez o fato mais importante da sua vida. Bussetto fica a uns 10 quilômetros de Parma, cidade que legou à Civilização o filé à parmeggiana, o que, admitamos, é bem mais do que já fez a maioria das cidades do planeta Terra. Eu trocaria os dois títulos mundiais da dupla Gre-Nal pela glória de Porto Alegre ter concebido iguaria semelhante ao filé à parmeggiana. Já Bussetto, sua glória eterna é mesmo Verdi, o mais famoso compositor da Bota, onde o chamam de “O Cisne de Bussetto”.


Pois bem. Durante o ofício da missa de um domingo da primeira metade do século 19, a capela bussettense borbulhava de lotada, e o padre não conseguia, de jeito nenhum, chamar a atenção de seu sacristão.


— Pepino! – chamava o pároco, sussurrando. — Pepino!


E o Pepino nem aí.


In extremis, o padre deu um pisão no pé de Giuseppe, que recuou, assustado, e gritou:


– Para, padre!


Um escândalo. Os padres eram autoridades nas cidades italianas e, naquela época, as crianças não desafiavam os adultos. Dar uma ordem a um padre consistia, tão-somente, em afronta. Terminada a missa, o santo homem marchou até a área rural do município a fim de se queixar para o pai de Giuseppe. Estavam diante de um absurdo: o menino não se concentrava em suas tarefas, passava o tempo todo absorto pela música que emanava do coro e do órgão da igreja.


O pai de Giuseppe poderia puni-lo pela falta. Havia motivos para tal. Mas não. No dia seguinte, ele reuniu suas economias, deslocou-se até a cidade e voltou de lá com uma espineta, espécie de piano pequeno parecido com o cravo. Se o menino apreciava música, quem sabe residia dentro daquele peito estreito algum talento especial.


Mais do que especial, na verdade.


Giuseppe aprendeu a tocar a espineta sozinho e, em pouco tempo, tornou-se o primeiro organista da igreja de Bussetto.


Começava ali uma trajetória de luz.


Se o velho Verdi não fosse um homem sensível, se ele censurasse ou castigasse o filho por sua desatenção, em vez de perceber naquele aparente defeito um dom, se o velho Verdi não fosse assim sagaz, o mundo perderia um de seus maiores artistas, e o pobre Giuseppe talvez se transformasse num plantador de brócolis frustrado.


O ponto decisivo dessa história é o seguinte: é o porquê. Por que o pai de Verdi tomou aquela atitude? Por que ele gastou todo o seu dinheiro na compra da espineta e investiu na vocação do filho?


A resposta é: ele estava preparado para isso. Aquela região da Itália é reconhecida pelo seu amor à música, além do filé famoso e do queijo parmesão, pelo qual eu trocaria as três Libertadores da América gaúchas.


Um pai brasileiro, que tipo de talento um pai brasileiro seria capaz de identificar em seu filho? O da bola, é claro. O menino apresenta uma tendência para ser jogador, o pai corre a desenvolvê-lo, matricula-o numa escolinha, esforça-se para colocá-lo num clube. Evidentemente porque vale a pena ser jogador de futebol no Brasil. Trata-se de uma concreta possibilidade de ascensão social.


Mas, assim como eu trocaria as Libertadores e os Mundiais pela invenção de um filé e de um queijo ralado, trocaria a primazia no futebol pela valorização da Educação. Verdi, inclusive, só se tornou Verdi porque houve investimento em sua formação. Aos 18 anos, já um fenômeno regional, seu futuro sogro e protetor o enviou para Milão, a fim de aperfeiçoar os conhecimentos que ele adquirira por conta própria. Na academia (que hoje, aliás, leva seu nome), os mestres o rejeitaram: consideraram-no muito velho para o aprendizado e repudiaram seu jeito bruto de tocar piano: como Verdi aprendera na espineta e sem orientação, ele batia com força demasiada nas teclas, como se estivesse martelando uma bigorna. Seu mecenas, porém, não desistiu: pagou-lhe um professor particular. Verdi empenhou-se devotadamente aos estudos e logo se converteu em maestro, para gáudio de toda a Itália.


Uma bela história, mas que só foi possível porque alguns homens comuns, homens que a posteridade esqueceu, compreenderam que um gênio, ainda que nasça para ser gênio, tem, mais do que tudo, de fazer-se gênio. E ninguém se faz gênio sozinho.


David Coimbra
Publicado em 08/07/09 - Jornal Zero Hora

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